Fonte: O Estado de S. Paulo
Modelo do certame do Tecon Santos 10, novo terminal de contêineres, deixa de fora da primeira etapa operadores com atividade no porto; valor da outorga e investimento podem superar R$ 10 bi
O Complexo Portuário de Santos, principal origem e destino de exportações e importações de cargas na América Latina, será palco de um grande disputa no setor no País. A licitação do Tecon Santos 10, maior terminal de contêiner da região, está prevista até o final do ano. Com investimento estimado de R$ 5 bilhões a R$ 6 bilhões, o terminal está na mira de vários grupos internacionais que atuam em transporte marítimo e movimentação de contêineres.
O certame, no entanto, acaba de parar na Justiça. O maior grupo armador do mundo, a dinamarquesa Maersk, entrou com mandado de segurança cível contra a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) questionando as regras da licitação. Pela modelagem da agência, ficam de fora do leilão os grupos que já operam em Santos, caso da Maersk, dona de 50% da Brasil Terminal Portário (BTP). Outros três operadores no porto são a sua sócia MSC, a CMA-CGM e a DPW World.
O juiz da 21ª Vara Cível Federal de São Paulo, onde a Maersk Brasil entrou com o mandado, concedeu prazo de 10 dias, até o fim desta semana, para que a Antaq preste informações sobre os questionamentos à licitação feitos pela impetrante da ação. O grupo dinamarquês alega que o modelo adotado pela Antaq restringiu a competição no maior leilão portuário do País.
Em nota ao Estadão, a A.P. Moller-Maersk destacou que defende regras claras no edital do Tecon Santos 10 que garantam a livre concorrência e estejam à altura da competitividade desse ativo, estratégico para o País. “Vetar a participação de empresas com ampla experiência internacional, responsáveis pela gestão de alguns dos portos mais eficientes do mundo, sem estudos aprofundados que respaldem essa decisão, reduz significativamente o potencial do projeto no maior porto da América Latina”, acrescentou.
A expectativa é que o leilão do Tecon Santos 10, em acirrada competição, gere mais de R$ 5 bilhões em outorga pela concessão. Esse dinheiro irá reforçar os cofres da União.
De um lado estão companhias que já operam no porto santista, num primeiro momento excluídas da disputa pelas regras do órgão regulador, cujo mote é evitar a concentração em Santos. De outro, grupos com baixa presença no Brasil, ou entrantes, que veem no novo empreendimento a chance de operar no maior porto brasileiro, onde trafega mais de 40% da carga movimentada por ano no País.
O segundo grupo defende uma licitação sem a presença dos atuais incumbentes, em linha com o que foi arbitrado pela Antaq ao definir a modelagem do leilão. A licitação deve ocorrer em duas etapas: a primeira, sem os atuais grupos que já operam em Santos. Caso não haja presença nessa fase, a segunda é aberta a todos interessados.
A medida desagradou os dois maiores armadores do mundo: o dinamarquês Maersk e o italiano MSC, sócios no BTP, além da francesa CMA-CGM, dona da Santos Brasil, e o grupo Dubai Ports World, que opera o DPW Santos, mas não tem a atividade principal de armador.
A CMA-CGM ainda não se manifestou se vai participar do leilão do terminal, pois investiu pesado em 2024 na compra do controle da Santos Brasil, maior terminal do porto santista. Especialistas do setor veem o grupo francês focado no novo ativo, cuja aquisição deve atingir R$ 13 bilhões se adquirir o total das ações da Santos Brasil em uma oferta pública.
Pessoas próximas das companhias operadoras alegam que há deliberada restrição por parte da agência reguladora a que elas participem na primeira fase do leilão. O poder público, argumentam elas, deveria ser responsável por garantir a livre concorrência no setor, como pede o armador dinamarquês em sua ação.
Candidatos que correm por fora e devem surgir na primeira etapa do leilão — se for mantido esse formato pelo Tribunal de Contas da União (TCU) — são o Cosco Group, da China; Hapag-Lloyd, da Alemanha; PSA, de Cingapura; ICTIS, das Filipinas; ONE, do Japão; Evergreen Lines, do Brasil; PIL e a China Merchants. Do Brasil, é apontada a JBS Terminais, operadora da gigante de proteína animal JBS, que pertence aos irmãos Batista.
“Todos os agentes nesse setor estão avaliando o Tecon Santos 10 como uma grande oportunidade”, afirma Alfonso Galhardo, sócio da A&M Infra e especialista em transporte, portos e aeroportos. Para alguns, avalia ele, é a porta de entrada no País. Por exemplo, a PSA, que ainda não está no Brasil, mas procura uma posição há algum tempo. ”Vejo, no mínimo, quatro a cinco grupos na disputa”, diz.
O grupo ICTIS já tem presença no Brasil em dois terminais: Suape (PE) e Rio de Janeiro. A China Merchants tem uma participação acionária no terminal TCP, de Paranaguá (PR).
A JBS Terminais é vista no setor como forte candidata na disputa do terminal — sozinha, em consócio com um grande operador, ou com fundos de investimento. Desde 2024, a empresa é operadora do terminal de contêineres do Porto de Itajaí (SC). Procurada, a empresa não se manifestou. Fontes próximas da JBS disseram ao Estadão que a empresa ainda avalia se participará do certame.
Patrício Junior, diretor de investimentos da América Latina da Terminal Investment Limited (TiL), subsidiária da operadora MSC, é crítico à modelagem da Antaq. “Não justifica o governo ir ao exterior em busca de investimentos ao mesmo tempo que impõe restrições ao capital que aqui já está e investe há 25 anos. Com a desculpa de que é necessário equilibrar o mercado com novos entrantes, os grupos aqui presentes foram colocados à margem do processo”, diz o executivo.
Pelas regras, as incumbentes podem participar de um segundo turno, caso não se verifique interessados no leilão na primeira etapa. Isso é praticamente impossível de acontecer, explicam especialistas, uma vez que o novo terminal, pela sua relevância, será objeto de desejo de muitos operadores desse setor.
Para Cláudio Frischtak, economista e sócio da consultoria em infraestrutura Inter B, não é um bom princípio a restrição de participantes, mesmo que sejam incumbentes, a não ser que se comprove práticas de baixa qualidade. “O que se deve fazer é a maximização da competição, do número de interessados. Se ganhar um incumbente, o importante é a natureza do contrato que vai ser firmado, exigindo as melhores práticas de operação e com cláusulas que impedem a concentração”, afirma.
Segundo o especialista, o problema maior é o atraso da licitação, que já deveria ter ocorrido há vários anos, porque o Porto de Santos está saturado, com demanda superando a oferta de contêineres. “O governo deve é maximizar números de interessados, atraindo quem está olhando o Brasil pela primeira vez. Santos é muito atrativo, o mais atraente da América Latina. Mais competição é melhor que menos competição”, afirma.
Frischtak diz que o pior risco para o governo, ao impor restrições no leilão, é a percepção de que o certame está direcionado para determinado grupo ganhar. Judicialização do certame não é bom para o País. “Essa é mais uma razão para o regulador considerar.”
APM Terminals, CMA-CGM e ICTIS não se pronunciaram. A DPW emitiu nota: “A DPW World esclarece que acompanha e confia na condução e melhor solução do processo pela Antaq e Ministério dos Portos e Aeroportos (Mpor)”.
O argumento da agência reguladora
A Antaq informou, em nota, que o objetivo foi promover e ampliar a concorrência no complexo portuário de Santos. Para isso, alega, foram definidas restrições à participação no leilão do arrendamento do Tecon Santos 10, na primeira fase, de empresas controladas, total ou parcialmente, por operadores que já atuam naquele mercado. “Esta agência reguladora é defensora da competitividade e entende que concentrações de mercado devem ser evitadas”.
Segundo a entidade, a decisão foi tomada, além de outros aspectos, com contribuições apresentadas durante a participação social, visando assegurar maior competição no porto, “em benefício da eficiência logística e do interesse público”.
No caso de não haver propostas válidas na primeira fase do certame, diz que operadores já atuantes no mercado de contêineres em Santos poderão participar, “desde que apresentem compromisso de saírem das participações que atualmente ocupem em terminal localizado no complexo”.
A agência aponta dois critérios técnicos principais que embasaram sua decisão: a concentração de mercado, que ultrapassaria o limite de 30% se um mesmo operador acumulasse o Tecon Santos 10 com outro terminal no porto, e o Índice Herfindahl-Hirschman (HHI), que também indicou níveis de concentração superiores aos aceitáveis para garantir ambiente concorrencial adequado.
O HHI, definido como uma medida de concentração de mercado, calcula a soma dos quadrados das participações de mercado de todas as empresas em um determinado setor. Se o resultado for abaixo de 1.500 indica mercado competitivo; acima de 2.500, altamente concentrado.
Incerteza para investidor estrangeiro
A restrição, ressalta Patrício Junior, da TiL, cria grande incerteza para o investidor estrangeiro. Segundo o executivo, há uma concentração natural no setor. A alemã Hamburg Sud foi comprada pela Maersk porque não conseguiu mais competir. Para ele, a Antaq não considerou dois licenciamentos já aprovados para terminais greenfield futuros em Santos: um da Triunfo Participações (com 5 milhões de TEUs) e outro da Evolve (1,7 milhão de TEUs).
“A Antaq já errou em Itajaí, na licitação temporária do terminal de contêineres. Por que errar de novo em Santos?”, afirma o executivo da TiL. A licitação provisória do terminal no Porto de Itajaí, no segundo semestre de 2023, teve a disputa de dois investidores e foi vencida pela Mada Araújo.
Sem condições de operar o terminal, a Mada repassou a licença para a JBS Terminais, que assumiu em outubro de 2024 e tem anunciado investimento na modernização e expansão. Uma das exigências é de operar ao ritmo de 44 mil TEUs ao mês, mais que o dobro do que faz atualmente. O prazo do arrendamento provisório foi de 24 meses, devendo ser lançado um edital definitivo para nova de licitação.
Cláudio Loureiro, presidente do Centronave (Centro Nacional de Navegação Transatlântica), diz que a modelagem é defeituosa por não apresentar critérios para cada uma das etapas. Por exemplo, o valor mínimo. Ao mesmo tempo, ao limitar participantes, tende a gerar valor menor da outorga. “É um contrassenso da União”, diz.
A preocupação sobre concentração, para Loureiro, parte do princípio de que vão cometer abusos. “A Antaq e os órgãos antitruste são bem avançados para coibir”, afirma.
O executivo, que publicou artigo refutando o modelo adotado para o leilão do terminal, avalia que o TCU poderá rever as restrições ao leilão. Sobre judicialização, diz que o risco avaliado é atrasar o processo e ampliar o estrangulamento já visto no porto em Santos.
Quem está no porto santista
Atualmente, quatro grupos de atuação internacional operam três terminais de contêineres no complexo portuário de Santos —o Tecon Santos, da empresa Santos Brasil, que é o maior de todos; o BTP e o DPW, cujo investidor é o grupo DP World (Dubai Ports World), considerado de “bandeira branca” por não ser armador.
Em conjunto, os três terminais somam capacidade instalada nominal para movimentar, 6,5 milhões de TEUs por ano. Porém, ao se considerar o nível de utilização máxima de um terminal, de até 80% da capacidade instalada, esse volume cai para 5,2 milhões de TEUs. Operar além desse patamar pode ocasionar o colapso das operações, segundo avaliações de especialistas do setor, o que já vem ocorrendo em Santos. A demanda prevista para este ano no complexo santista é de 5,8 milhões de TEUs, segundo operadores.
O Santos Brasil, que em 2024 foi adquirido pela gigante francesa CMA-CGM, terceiro maior grupo armador do mundo, tem capacidade nominal de 2,7 milhões de TEUs. No momento, toca um plano de expansão que eleva o volume em apenas 10% até o final de 2026. Hoje, o Santos Brasil representa 42% do total de contêineres do porto de Santos.
O BTP é a joint venture entre as gigantes Maersk e MSC, cada um com participação de 50%. A Maersk, que foi fundada em 1904, opera o negócio de contêineres por meio de sua divisão de transporte e logística APM Terminals, que tem sede em Haia, Holanda. A concorrente MSC, fundada pelo bilionário italiano Gianluigi Aponte, atua com a subsidiária Terminal Investment Limited (TiL), baseada em Genebra, na Suíça.
O BTP, construído em 2013, atualmente tem capacidade instalada anual de movimentação de 2,4 milhões de TEUs. Situado próximo da área do Tecon Santos 10, o terminal também está em processo de expansão, devendo atingir 2,8 milhões de TEUs em 2027.
O DPW é controlado pela DP World Brasil, que entrou no negócio como acionista minoritário em 2010, com um terço do capital, em associação com o grupo Odebrecht (66,67%), constituindo a Embraport (Empresa Brasileira de Terminais Portuários). Entrou em operação em julho de 2013. No final de 2017, abalado pelo impacto da Operação Lava Jato, a Odebrecht vendeu o controle para a sócia.
Com perfil multipropósito, o DPW, instalado na margem esquerda do canal do porto, tem hoje capacidade de movimentação anual de 1,4 milhão de TEUs e de 3,6 milhões de toneladas de celulose. Com uma ampliação prevista, deve chegar a 1,7 milhão de TEUs.
Perfil do novo terminal de Santos
O Tecon Santos 10, novo nome do STS-10, está localizado na área conhecida como Saboó, na margem direita do canal de Santos. Com cais previsto de 1,5 mil metros de extensão, o terminal terá capacidade nominal para movimentar o equivalente a 3,5 milhões TEUs (medida equivalente a um contêiner de 20 pés), além de 11 mil toneladas de cargas gerais. Poderá receber quatro grandes embarcações ao mesmo tempo. A área destinada ao projeto é de 622 mil m².
Na execução do empreendimento bilionário são previstas ao menos quatro fases de instalação, até atingir a plena capacidade, em 2034. A primeira etapa estaria pronta em 2027, com 300 mil TEUs. O valor global do contrato, durante os 25 anos de concessão, é de R$ 44,4 bilhões. A concessão poderá ser renovada até duas vezes.
É a segunda tentativa de arrendamento dessa área, num processo recheado de questionamentos desde que surgiu. Ainda como STS-10, o terminal teve o leilão suspenso em 2023 pelo atual governo.
O atual modelo definido pela Antaq gerou descontentamento de quem já está atuando em Santos e foi visto como anticompetitivo ao impor restrição na primeira fase. O argumento da agência é de evitar concentração no porto em mãos dos atuais operadores.
Em 27 de maio, a proposta da agência reguladora foi encaminhada para avaliação do TCU, que poderá fazer ajustes à modelagem. O órgão terá de 75 a 90 dias para dar seu parecer ao modelo de licitação desenhado pela Antaq. A previsão é que o Tecon Santos 10 vá a leilão no final de novembro.
“O novo terminal é um projeto relevante, de grande importância para o porto de Santos, que já está extremamente ocupado e operando acima de 90% da sua capacidade de movimentação de contêineres”, afirma Galhardo, sócio da A&M Infra. “Para o curto e médio prazo não há outra solução que gere respiro na oferta e demanda. Esse terminal já deveria estar pronto e em operação”.
Sobre a modelagem, diz que a definição deve partir de uma política pública e que, independentemente de o leilão ser em uma ou duas etapas, vai haver muitos interessados no certame. “É fundamental que o vencedor seja um player com know-how técnico profundo para tocar o empreendimento”, acrescenta Galhardo.
A construção do terminal envolve ainda questões técnicas a serem solucionadas, diz o especialista. Por exemplo, acessos rodoviário e ferroviário (internos e externos) e a instalação de novo terminal de passageiros na mesma área, entre outras.