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Justiça do Trabalho em Santos: Contexto histórico - 1964/1985 - panoramas e desafios

Fonte: Portal da Memória do TRT-2

 
O dia 1º de abril de 2024 é uma data que remete a dois importantes eventos no âmbito do TRT-2. Além de registrar os 80 anos de instalação da primeira Vara do Trabalho na cidade de Santos (a mais antiga unidade do Regional fora da Capital), marca também os 70 anos da segunda unidade judiciária da localidade (instalação essa que apenas consolidou a posição de Santos dentre as cidades mais demandadas do TRT-2 e do país). Em âmbito nacional, 1º de abril é o dia em que, 60 anos antes, iniciava-se um dos períodos mais obscuros da história do Brasil: o Regime Militar.
 
Foi com essa data em mente que a equipe da Seção de Gestão de Memória começou a pensar em como abordar assuntos tão importantes, de forma a permitir não apenas analisarmos um pouco de nossa própria trajetória, mas vermos como a nossa história está intimamente conectada à história de nosso país. E foi uma outra atividade de nosso setor que nos levou à solução desse desafio.
 
Das asas da Embraer às docas de Santos
 
Uma das atividades da Seção de Gestão de Memória do TRT-2 é o atendimento a pesquisadores. Trata-se de um público bem diversificado, de dentro ou de fora do Tribunal, vinculados ou não à academia, oriundos de São Paulo, de outros estados e até mesmo de fora do país. Em qualquer situação, nossa equipe sempre busca auxiliá-los na localização de fontes relacionadas aos seus objetos de pesquisa.
 
Mas não apenas o público é bastante variado. Esses pesquisadores nos trazem uma multiplicidade tão grande de temas, períodos e questões que, ao buscarem o nosso auxílio, acabam eles próprios nos ajudando. A cada vez que nos mobilizamos para atender uma demanda de pesquisa, entendemos melhor a riqueza e os limites de nosso acervo e aprendemos mais sobre a história do Tribunal e da Justiça do Trabalho.
 
Não é raro estarmos desenvolvendo outras atividades, como a produção de uma exposição, e nos lembrarmos daquilo que aprendemos durante o atendimento aos pesquisadores. Foi exatamente o que aconteceu meses depois do pesquisador Nilo Dias de Oliveira nos procurar. Seu objetivo era encontrar processos trabalhistas que apontassem indícios de participação da Embraer na violação de direitos humanos durante a ditadura civil-militar (1964-1985).
 
Nilo faz parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, coordenado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O projeto foi financiado por recursos doados no âmbito do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público de São Paulo (MPSP), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Volkswagen. A empresa reconheceu sua participação na violação de direitos e sua colaboração com os órgãos de repressão durante a ditadura.

À esquerda, operários da Volkswagen na montagem de motores, 1964. Fonte: acervo Centro de Memória de São Bernardo do Campo. À direita, Lúcio Bellentani, preso na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo com apoio direto da segurança interna da fábrica. Foto: Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress.
 

Ficha da Volkswagen informando a conduta de operários durante a greve de 1979. Fonte: Agência Brasil.
 
Do montante doado à Unifesp, parte foi destinada ao Centro de Antropologia e Arquivologia Forense (CAAF/Unifesp) para apoio à identificação de pessoas desaparecidas. Outra parte foi alocada na pesquisa sobre a cumplicidade de outras empresas com a ditadura.
 
O projeto inicialmente incluiu dez empresas: Aracruz, Companhia Docas de Santos, Companhia Siderúrgica Nacional, Cobrasma, Fiat, Folha de S.Paulo, Itaipu, Josapar, Paranapanema e Petrobras. No início de 2023, a partir de outro convênio, foram incluídas a Belgo Mineira, hoje ArcelorMittal, a Mannesman, atual Vallourec, e a Embraer, objeto de pesquisa de Nilo.
 
Infelizmente não conseguimos ajudá-lo diretamente, pois os dissídios individuais relacionados à Embraer não se encontram em nosso acervo. Como a empresa é sediada em São José dos Campos, fora da atual jurisdição do TRT-2, a documentação está localizada nos arquivos do TRT-15. Dessa forma, entramos em contato com o Centro de Memória, Arquivo e Cultura do regional sediado em Campinas, que passou a atender o pesquisador.
 
Alguns meses depois, ao realizarmos pesquisas para a produção de uma exposição sobre os 80 anos da Justiça do Trabalho em Santos (aberta para visitação a partir do dia 11 de abril, no saguão do Ed. Sede do TRT-2), identificamos informações que nos remeteram ao projeto do qual Nilo faz parte. Pesquisando nos jornais locais em busca de referências à atuação da Justiça do Trabalho na cidade, começamos a nos deparar com notícias sobre ações trabalhistas contra a Companhia Docas de Santos (CDS), uma das empresas incluídas no projeto da Unifesp.
 
Chamou-nos a atenção a recorrência de reclamações, nas Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos, de funcionários da CDS demitidos “por subversão”, ou por terem sido indiciados em inquérito policial militar (IPM). Além disso, em outras ações, os trabalhadores das Docas pleiteavam o restabelecimento de direitos que haviam sido suprimidos pela empresa nos primeiros anos que se seguiram ao golpe de 1964.
 
Verificamos que a Justiça Trabalhista foi procurada inúmeras vezes pelos trabalhadores da CDS em ações que revelam indícios de colaboração da empresa com os órgãos de repressão na violação de direitos humanos.

Polícia invade o Sindicato dos Portuários de Santos, em abril de 1964. Fonte: Memorial da Democracia.

Surgiu então o interesse de compreendermos melhor como se deu a atuação das juntas de conciliação e julgamento de Santos durante a ditadura civil-militar, principalmente diante dos impactos sofridos pelos trabalhadores da CDS nos primeiros anos pós-golpe. Além dos periódicos santistas, investigamos dissídios coletivos, relatórios e atas do TRT-2, arquivos da ditadura e parte da bibliografia sobre o período. Concluímos que seria importante compartilhar aquilo que temos aprendido sobre essa história.
 
Diferentemente da exposição sobre os 80 anos da Justiça do Trabalho em Santos, que abordará sua história de forma ampla, neste texto celebraremos a atuação de suas juntas por meio de um recorte mais específico, relacionado à outra efeméride histórica deste ano de 2024: os 60 anos do golpe civil-militar de 1964.
 
O objetivo principal deste texto é, portanto, apresentarmos os resultados iniciais dessa pesquisa, buscando destacar a atuação da Justiça do Trabalho diante da colaboração da Companhia Docas de Santos com a ditadura civil-militar.
 
A Justiça do Trabalho e a ditadura
 
Antes de entrarmos mais diretamente no tema da pesquisa, precisamos entender alguns aspectos da relação estabelecida entre os militares e a Justiça do Trabalho a partir de 1964.
 
Ao analisar os depoimentos de magistrados em seu projeto de história oral, a historiadora Ângela de Castro Gomes destaca a percepção entre esses juízes – que viveram nos anos 1970-1980 sua formação universitária ou seus primeiros anos de judicatura – de que “o regime militar teria sido ‘inteligente’, não revogando a legislação trabalhista, nem produzindo enfrentamentos radicais e abertos com o Poder Judiciário, a despeito de uma convivência muito tensa”.
 
Ainda de acordo com esses magistrados, “o que teria ocorrido entre as décadas de 1960 e 1980 seria, na prática, um bloqueio político ao caminho clássico de inclusão social, via legislação do trabalho, mas sem sua eliminação formal”. Isso teria se dado, inclusive, privando a Justiça do Trabalho de recursos materiais e humanos fundamentais para o exercício de suas atividades. Ela teria sido preservada, mas sem condições de atuar efetivamente.
 
Outra limitação imposta pelos militares à Justiça do Trabalho diz respeito ao exercício do poder normativo. Com a política salarial imposta pelo regime e a publicação da Lei 4.725/1965, conhecida como Lei dos Dissídios Coletivos, a Justiça Trabalhista viu diminuída sua influência nas questões salariais.
 
Buscaremos, a partir da análise das fontes, compreender de que forma a Justiça do Trabalho de São Paulo e, especialmente, a de Santos, atuaram diante dessas limitações e obstáculos.
 
Precariedade na Justiça do Trabalho
 
A Justiça do Trabalho em Santos sempre passou por dificuldades, principalmente para se instalar de forma adequada. Antes mesmo da instalação da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento da cidade, em 1944 (criada no ano anterior, pela Lei 5.926/1943), as ações trabalhistas já haviam sido julgadas em, pelo menos, três endereços distintos.
 
A própria instalação da 1ª Junta, em abril de 1944, foi cercada de desafios, a começar pela falta de recursos. A dotação orçamentária sequer era suficiente para o pagamento do aluguel do imóvel, sendo o valor complementado pelas entidades sindicais da cidade. A junta também não tinha recursos para o mobiliário necessário ao desempenho de suas atividades. Segundo o Relatório Anual de Atividades do CRT-2 de 1944, os sindicatos de Santos prestaram o seu apoio. As máquinas de escrever, por exemplo, foram emprestadas pelo Sindicato dos Operários no Serviço Portuário de Santos.

Relatório de Anual de Atividades do ano 1944 destaca a ajuda dos sindicatos na instalação da Justiça do Trabalho em Santos. Fonte: acervo TRT-2.

Já a 2ª Junta, instalada dez anos depois, sofreu com a falta de funcionários. A Lei 2.020/1953, que criou o órgão, não aprovou o projeto que definia seu quadro de pessoal. Com a posse de seu juiz-presidente, Ildélio Martins (primeiro juiz concursado da história da Justiça do Trabalho), a junta foi instalada por meio de uma solução provisória: o destacamento de funcionários de outras seções do TRT-2 para atuarem em Santos. Anos depois, sem os funcionários cedidos pelo Tribunal, a junta precisou solicitar pessoal à prefeitura da cidade.
 
As condições de trabalho se agravam durante a ditadura
 
precariedade dos prédios da Justiça do Trabalho em Santos é um problema que vem desde a instalação das primeiras juntas. No entanto, durante o Regime Militar, essa situação se agravou e chegou ao ponto de ameaçar a segurança de juízes, funcionários, advogados e partes. Serviu, inclusive, de justificativa para a primeira incineração massiva de processos trabalhistas.
 
Enquanto, ano a ano, era superado o recorde de processos recebidos e distribuídos, as condições das instalações da Justiça do Trabalho em Santos se tornavam mais precárias. Os problemas iam se agravando e as mudanças de endereço apenas amenizavam temporariamente os seus efeitos, até voltarem com mais força. 
 
Em 11 de junho de 1965, o jornal “A Tribuna” já indicava a causa da má conservação do prédio da rua Brás Cubas, que abrigava as duas juntas desde 1954: “A inexistência de verba para conservação do prédio transformou-o num autêntico pardieiro, onde o piso, o teto e as paredes oferecem o mais deplorável aspecto”.

Jornal “A Tribuna”, de 11 de junho de 1965, retrata a precariedade das instalações da Justiça do Trabalho em Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

No ano seguinte, os problemas estruturais agravados pela insuficiência de recursos ganharam enormes proporções quando a nova lei do inquilinato aumenta o preço dos aluguéis. Uma série de ações de despejo foram movidas contra as juntas de conciliação e julgamento, não só de Santos, como de toda a jurisdição do TRT-2.
 
O presidente do Tribunal, Hélio de Miranda Guimarães, no Relatório Anual de Atividades de 1966, alertou para as consequências dessa situação, que recairia na própria imagem da Justiça Trabalhista: “De maior gravidade reveste-se a ação de despejo que ocorre contra o imóvel situado à rua Rego Freitas 527 – local onde funcionam as 23 Juntas de Conciliação e Julgamento desta Capital, bem como garagem e vários outros serviços desta Justiça. São verdadeiramente imprevisíveis os efeitos e a negativa ressonância que o despejo acarretará – quer para o prestígio do próprio Judiciário, como entidade pública, quer pelo seu alcance social”.
 
A situação não era boa. E se agravou quando o proprietário do prédio alugado pela Justiça do Trabalho em Santos ganhou a ação de despejo, cuja sentença havia determinado data para a desocupação do prédio. Em março de 1967, mês de expiração do prazo, uma notícia relatava o desespero de juízes e funcionários com a possibilidade de que móveis, arquivos e máquinas de escrever fossem jogados na rua. Para evitar esse desfecho, todos procuravam “freneticamente” um prédio em que as Juntas pudessem ser alojadas, como apontava a edição do dia 1º de março de 1967 do jornal “A Tribuna”. Todos buscavam uma forma de resolver a questão.

 
Entrada do prédio da JT de Santos, em 1967. Fonte: acervo “A Tribuna”.   Interior do mesmo prédio, localizado na rua Brás Cubas. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
A demanda das juntas chegou ao Congresso Nacional por meio do deputado federal de oposição, Gastone Righi, posteriormente cassado pelo Ato Institucional 5 (AI-5). O parlamentar apresentou requerimento de informações ao Ministério da Justiça sobre os despejos em curso nas juntas da Capital e do interior. Righi destacou que já estaria em fase de execução ações de despejo contra as 23 juntas da Capital e contra as juntas de 11 cidades do interior, incluindo Santos.
 
O deputado lembrou que o TRT da 2ª Região já solicitara a verba necessária para a solução do problema há vários meses, questionando o motivo de ainda não ter sido remetida ao Congresso Nacional uma mensagem solicitando os recursos. Afirmou ainda que essa situação era consequência do “lamentável erro da falta de programação do governo, bem como a distorção do bom senso administrativo que exige sejam os órgãos definitivos e de importância instalados em prédios próprios”. Ainda de forma incisiva, concluiu: “Estamos diante de um quadro realmente assustador. A Justiça do Trabalho está na iminência de ser paralisada no estado de São Paulo. Nenhuma medida sequer foi tomada pelo Governo Federal para impedir a sucumbência, nem mesmo pleiteou os créditos especiais para atender à correção monetária dos alugueres” (“A Tribuna”, 26/6/1967).
 
Um recurso pendente de julgamento adiou a execução do despejo em Santos, enquanto a situação piorava: corredores estreitos, sujos e sempre lotados; elevador quebrado; falta d’água, sanitários entupidos e buracos pelo chão; advogados sem sala e trabalhadores sem terem onde se sentar. Sem espaço para arquivar a documentação, os processos permaneciam empilhados nas mesas, sujeitos à umidade provocada pelas goteiras.
 
A situação do prédio era tão degradante que Walter Cotrofe, então juiz substituto da 1ª Junta, declarou que teve vergonha de convidar o jurista Mozart Victor Russomano ao edifício, quando de sua visita à cidade. Ao comentar também sobre a sobrecarga de processos, o juiz revelou o impacto que a conjuntura pós-golpe trouxe para a estruturação da Justiça do Trabalho em Santos: “Antes da Revolução, havia vários projetos de lei criando novas juntas em várias cidades, inclusive Santos, São Vicente e Itanhaém. Com o governo revolucionário todos os projetos foram enviados ao Tribunal Regional do Trabalho para serem reduzidos a um só que contivesse apenas o realmente necessário. Entre as juntas previstas, está uma para Santos, mas o projeto ainda está no Executivo”.

Jornal Cidade de Santos, de 11 de novembro de 1967, destaca a possibilidade de despejo. Fonte: Hemeroteca Digital Santista.

Já a juíza substituta da 2ª Junta, Neyde de Sá, comparou as boas instalações da Justiça Estadual no interior com a situação da Justiça do Trabalho, “uma justiça social, que é relegada ao ostracismo e instalada, muitas vezes, em porões, armazéns e barracões”. Ao jornal “Cidade de Santos”, em edição do dia 11 de novembro de 1967, Neyde de Sá declarou ainda que o presidente do TRT-2 afirmou não poder fazer nada, pois não havia verba sequer para alugar um novo prédio.
 
A situação não seria resolvida rapidamente. Apenas em abril de 1968, a mudança para um novo endereço ocorreria: na rua XV de Novembro. De acordo com o “Cidade de Santos” (14/3/1968), essa solução só foi possível porque o proprietário do imóvel “tudo fez para ceder o conjunto de salas, chegando até a reduzir sensivelmente o aluguel que exigia de maneira que a verba reservada às juntas de conciliação e julgamento desse para as despesas”. O locador era José Gomes, ex-prefeito de Santos, cassado em 1964.
 
inauguração do novo prédio, no entanto, sofreu diversos atrasos. Como o antigo edifício da rua Brás Cubas teve que ser abandonado às pressas por causa da ação de despejo, os móveis, arquivos e máquinas precisaram ser amontoados nas novas salas, atrapalhando as reformas que seriam necessárias para o funcionamento das juntas.
 
Inicialmente, a mudança gerou um clima de otimismo com a possibilidade de melhores condições de trabalho. Segundo o juiz-presidente da 2ª Junta, João de Freitas Guimarães, pela primeira vez a Justiça Trabalhista em Santos colocava-se “em nível compatível com a sua dignidade”. Os processos deixariam de ser amontoados por falta de lugar e teriam agora “espaço suficiente para arquivamento conveniente”.
 
No entanto, o ano de 1968 teve uma demanda de trabalho ainda mais intensa, seguindo a tendência dos anos anteriores. Quase oito mil processos foram distribuídos entre as duas juntas da cidade, volume 40% maior do que o observado em 1967. Esse novo recorde de reclamações trabalhistas sobrecarregou as juntas de tal forma que, apenas cinco meses depois da mudança, as expectativas de melhora com as novas instalações já se viam frustradas.
 
“Assim não é possível continuar”
 
Toda essa sobrecarga de trabalho, além de ter reforçado a necessidade da instalação de uma terceira junta, potencializou a insatisfação com as alterações remuneratórias que atingiram os juízes trabalhistas no pós-golpe. Ainda em 1964, o governo militar retirou algumas de suas vantagens, praticamente anulando os ganhos obtidos com o reajuste concedido no mesmo ano.
 
O juiz João de Freitas Guimarães expressou esse conjunto de insatisfações, em uma entrevista ao jornal “A Tribuna”, de 27 de agosto de 1968: “Além do serviço, que é muito, obrigando a que se trabalhe em regime de tempo integral, o encarecimento do custo de vida já não permite que se viva mais sem vexames. O ministro Jarbas Passarinho poderia vir até aqui para conhecer as condições de trabalho em que estamos; é imediata a necessidade de criação de mais juntas de Conciliação em Santos. O horário normal de funcionamento da Junta é das 12h às 18h, mas os 60 despachos que entram por dia não deixam que se trabalhe somente neste período”. Freitas avisava que, se até dezembro o problema não fosse resolvido, interromperia a prestação dos serviços, pois assim não seria possível continuar.
 
Juiz João de Freitas Guimarães com a mesa empilhada de processos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Não se tratava de um sentimento isolado. Juízes titulares e substitutos das juntas de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso se reuniram para discutir sua situação salarial. Dias depois, a juíza Neyde de Sá, em demonstração de apoio ao movimento nacional, fez constar em ata de julgamento o seu protesto, afirmando que “a exiguidade dos vencimentos dos juízes do trabalho, em relação ao dos magistrados estaduais”, era “risível”.
 
No final dos trabalhos, a juíza determinou que uma cópia da ata fosse enviada ao presidente da República, aos ministros do Trabalho, da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, aos presidentes do Senado e da Câmara e aos líderes da maioria e da minoria. Cópias também foram enviadas aos principais jornais de Santos, acompanhadas de um ofício solicitando “divulgação gratuita, por absoluta falta de verba não só oficial como pessoal”. Apesar do apelo, os jornais publicaram apenas trechos da ata.


Juíza Neyde de Sá protesta e recebe solidariedade de advogados e do movimento sindical. Fonte: jornal “Cidade de Santos” / Hemeroteca Digital Santista.

vogal dos empregados e os advogados presentes na audiência ratificaram o protesto. O apoio também veio do Sindicato dos Estivadores de Santos, que destacou a importância do trabalho realizado por magistrados e servidores: “Nós que contribuímos para sobrecarregar os serviços dos juízes e seus auxiliares, não podemos nos furtar ao apoio que damos neste instante àqueles servidores da Justiça do Trabalho, cuja dedicação é conhecida por todos, sobretudo pelos operários, que tantas vezes são testemunhas da operosidade dos magistrados e funcionários” (“Cidade de Santos”, 6/11/1968).
 
A necessidade da nova junta, a precariedade das instalações e a incineração de processos
 
A demanda pela criação da 3ª Junta demorou a ser atendida, mesmo com os sucessivos recordes de processos distribuídos em Santos. O movimento verificado entre 1964 e 1969 mais do que triplicou. Nesse período, em vez de mais uma junta para desafogar as duas já existentes, a Justiça Trabalhista de Santos viu sua jurisdição ser ampliada para outras cidades, como Guarujá e São Vicente. A situação tendia a caminhar para o colapso com a quantidade de processos distribuídos em 1969, 73% maior do que a do ano anterior.
 
Finalmente, a Lei 5.643/1970 criou a 3ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos. No entanto, os problemas estruturais permaneciam. Onde o novo órgão seria instalado? No edifício da rua XV de Novembro, já funcionando em condições inadequadas? A ideia de um prédio próprio ganhava força com a necessidade de mais espaço.
 
As verbas para o edifício novo, no entanto, não chegaram. E a 3ª Junta foi instalada no mesmo prédio que já abrigava as demais unidades, em setembro de 1971. Além do espaço insuficiente, a nova junta não contou inicialmente com funcionários próprios, mas cedidos pela Câmara Municipal de Santos e pela Prefeitura de Cubatão. Mesmo assim, havia a expectativa de que o novo órgão desse vazão à crescente demanda verificada nos últimos anos. Segundo o juiz João de Freitas Guimarães, então diretor do Fórum, o tempo médio de tramitação dos processos variava de sete meses a um ano.
 
Em menos de dois anos, as condições já se apresentavam extremamente precárias. Uma curvatura no assoalho da sala onde se encontravam os arquivos da 1ª e da 2ª Juntas tornava possível a ocorrência de um acidente de proporções trágicas. A falta de recursos não tinha como consequência apenas a sobrecarga de trabalho, condições insalubres, falta de funcionários e defasagem salarial de juízes e funcionários. O rebaixamento no piso do prédio colocava em risco a vida de todos que por ali passavam. 
 
O presidente do Tribunal na época, Homero Diniz Gonçalves, realizou uma visita ao prédio para verificar a extensão do problema. Além de solicitar vistoria a ser realizada pela prefeitura, Gonçalves sugeriu como solução uma providência controversa: a incineração dos processos arquivados que datassem de 1939, quando da instituição da 1ª JCJ em Santos.

Jornal “A Tribuna”, de 1° de setembro de 1973, destaca o rebaixamento do piso e as medidas propostas pelo presidente do TRT-2, Homero Diniz Gonçalves. Fonte: acervo “A Tribuna”.

No âmbito do TRT-2, a incineração de processos findos há mais de cinco anos já havia sido proposta pela presidência em 1967. O Tribunal decidiu não acolher a proposta, diante da possibilidade de mudança para outro imóvel, capaz de abrigar a documentação “sem o recurso extremo da incineração”.
 
Assim como em Santos, o volume e o peso dos processos também ameaçavam a segurança de todos que transitavam pelo prédio do TRT-2. A solução não veio com a mudança para uma nova sede e nem com a incineração dos documentos. De acordo com o Relatório Anual de Atividades de 1968, “outros caminhos foram tentados, obtendo-se então do MM. Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em caráter temporário, a cessão de área localizada no imóvel onde são mantidas partes dos arquivos daquele Tribunal de Justiça”.
 
Enquanto isso, em Santos, durante correição, Homero Diniz Gonçalves insistiu na proposta de incineração. O presidente autorizou o diretor do fórum a obter propostas para locação de imóveis no centro da cidade com viabilidade de aquisição, tão logo a verba fosse liberada pelo Governo Federal. Apesar da perspectiva de mudança para um novo prédio, Gonçalves considerou urgente a solução que visava incinerar os processos.

Matéria do Jornal A Tribuna, de 17 de outubro de 1973, sobre a proposta de incineração de processos. Fonte: acervo ‘A Tribuna”.

Em 4 de fevereiro de 1974, o TRT-2 aprovou por unanimidade a incineração de documentos, com base no artigo 1.215 do Código de Processo Civil. Nos meses seguintes, o Tribunal também autorizou o procedimento nas juntas de Sorocaba, Taubaté, Jundiaí, Guarulhos, São Caetano do Sul e Santo André, no Estado de São Paulo, assim como nas juntas de Curitiba e Paranaguá, no Paraná, e Cuiabá, no Mato Grosso.
 
Em 8 de agosto de 1974 foram publicados os editais de incineração de processos das 1ª e 2ª Juntas de Santos, com prazo de 90 dias para o requerimento de desentranhamento de peças ou extração de certidões. No caso da 1ª Junta, foi autorizada a incineração dos processos arquivados entre 1944 e 1968, incluindo os originários do Conselho Nacional do Trabalho. Já no caso da 2ª Junta, os processos a serem eliminados foram arquivados entre 1954 e 1963. O procedimento foi amplamente divulgado pela imprensa local.

Jornal “A Tribuna”, de 8 de agosto de 1974, publica os editais de incineração de processos das 1ª e 2ª Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Dias antes da incineração, o TRT-2 ainda autorizou incluir na incineração as fichas e livros relativos aos feitos findos, além de documentos administrativos que haviam sido tomados por cupins e que, por isso, não poderiam ser transportados para as novas instalações “a fim de que se evite a contaminação dos processos em andamento, bem assim dos móveis e utensílios (…)” (Livro de Atas do TRT-2, 1974-75, Ata n° 84/74).
 
Nos dias 5 e 16 de dezembro de 1974, dezenas de milhares de processos foram eliminados no forno incinerador localizado no subsolo da agência do Banco do Brasil de Santos. Reportagem do dia 5 de dezembro de 1974 do jornal “A Tribuna” informava que o processo n° 2/1944 encabeçava os volumes a serem incinerados. O processo n° 1/1944 foi enviado, na época, à Biblioteca do TRT-2. Hoje o documento faz parte do acervo permanente do Regional. Trata-se de um dos poucos processos desse período que foram preservados e compõe a exposição que celebra os 80 anos da Justiça do Trabalho em Santos.

 
Matéria do jornal “A Tribuna”, de 12 de dezembro de 1974, sobre a incineração dos processos da 1ª JCJ. Fonte: acervo “A Tribuna”.   Jornal “A Tribuna”, de 17 de dezembro de 1974, relata a incineração na 2ª JCJ. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Podemos concluir que a limitação de recursos materiais imposta pelo Regime Militar à Justiça do Trabalho não foi responsável apenas por prejudicar as condições de trabalho e o desempenho das atividades das juntas de conciliação e julgamento. Tais condições precárias também serviram de justificativa para a eliminação massiva de processos sem observação de critérios para guarda seletiva de autos para o acervo histórico, um duro golpe para a preservação da memória e da história da Justiça do Trabalho, inclusive sobre sua atuação nos primeiros anos da ditadura.
 
Por mais grave que tenha sido, essa limitação de recursos foi apenas uma das consequências sofridas pela Justiça do Trabalho durante o período de exceção. Isso porque, no campo da prestação jurisdicional, a JT passou a lidar com uma nova realidade: a limitação de seu poder normativo.
 
Política salarial e limitação dos poderes normativos da Justiça do Trabalho
 
Instituído em 1º de maio de 1940, pelo então presidente Getúlio Vargas, o salário-mínimo foi criado para atender as necessidades do trabalhador. Entre 1940 e 1964, seu valor foi elevado algumas vezes (por Vargas e Juscelino Kubitschek), ficando inalterado durante o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). A última modificação sofrida pelo salário-mínimo aconteceu pouco antes do golpe civil-militar, em fevereiro de 1964, quando o governo João Goulart o aumentou em 87,2%. A inflação era, naquele momento, um vilão a ser enfrentado, que corroía a remuneração dos trabalhadores, batendo a casa dos 90% em 12 meses.
 
Com o golpe de 1964 e a implantação da ditadura, um novo modelo econômico foi imposto. A política salarial implementada logo nos primeiros anos da ditadura civil-militar foi caracterizada por uma série de medidas que visavam controlar a inflação por meio do achatamento dos salários. Essa política pretendia garantir redução de custos para as empresas, muitas delas apoiadoras do novo regime.
 
Logo após o golpe, o movimento sindical foi duramente atingido com as prisões de suas lideranças e a nomeação de interventores para substituí-los. Ainda em 1964, a Lei 4.330, conhecida como Lei Antigreve, passou a restringir severamente o direito que era garantido, mesmo com limitações, na Constituição de 1946.

Castelo Branco sanciona a Lei Antigreve acompanhado de Arnaldo Sussekind, ministro do Trabalho e Previdência Social, 1° de junho de 1964. Fonte: Memorial da Democracia.

A essas medidas, que dificultavam a luta dos trabalhadores por melhores salários, somaram-se as diretrizes do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg), lançado em agosto de 1964. Segundo a historiadora Larissa Corrêa, um de seus objetivos era alcançar a estabilidade econômica, controlando a inflação por meio de medidas de contenção salarial.
 
Com a restrição ao direito de greve, os trabalhadores passaram a enxergar a reclamação trabalhista como uma das poucas ferramentas viáveis para a defesa de seus direitos. Sufocados pelo aumento do custo de vida, os trabalhadores pressionavam seus sindicatos, que recorriam à Justiça do Trabalho em busca de direitos e reajustes salariais.
 
No entanto, o governo buscou interferir na atuação dos tribunais trabalhistas por meio da limitação de seu poder normativo, exercido até então no julgamento dos dissídios coletivos. Para a historiadora Claudiane Torres da Silva, “a preocupação da ditadura civil-militar em regular os dissídios coletivos está na possibilidade de um pedido em dissídio, quando apreciado pela Justiça do Trabalho, através do poder normativo, virar uma norma até então não prevista legalmente. Logo, o fato da Justiça do Trabalho ter sido atrelada ao Poder Judiciário mantendo o poder normativo deu poderes que a ditadura temia exceder os limites por ela determinada”.
 
Esses limites estavam expressos no conjunto de leis e decretos que definiam a política salarial do governo. Deixar aberta a possibilidade de a Justiça do Trabalho inovar no ordenamento jurídico com as sentenças normativas, colocava em risco a própria política de arrocho salarial. Para os militares, era urgente diminuir a influência dos juízes trabalhistas na resolução dos conflitos de natureza econômica.
 
A Lei dos Dissídios Coletivos
 
A Lei 4.725/1965, também conhecida como “Lei dos Dissídios Coletivos” ou “Lei do Arrocho Salarial”, impôs regras e parâmetros complexos para o cálculo e a definição dos reajustes salariais, limitando o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho. Entre outros mecanismos, uma fórmula matemática desenvolvida pelo Departamento Nacional de Emprego e Salário passou a restringir a discricionariedade dos juízes trabalhistas nas sentenças normativas.


Fórmula definida pelo governo para o cálculo de reajustes salariais, presente no dissídio coletivo n° 4/1966. Fonte: acervo TRT-2.

De acordo com o artigo 2º da nova lei, o reajuste salarial a ser adotado nos julgamentos dos dissídios coletivos deveria ter como base um índice que representava a média do salário real nos últimos 24 meses. Deveria considerar também as necessidades mínimas de sobrevivência do assalariado, mas observando os impactos do reajuste na economia nacional.
 
A pressão sobre a Justiça do Trabalho era grande. Os empresários exigiam a aplicação da nova política salarial e o governo dirigia recados por meio da imprensa. Em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, o ministro da Fazenda, Octávio Gouvêa Bulhões, cobrava o sacrifício dos trabalhadores e ponderação por parte dos juízes trabalhistas para que os reajustes salariais não comprometessem a política econômica.
 
O TRT-2 e a Lei dos Dissídios
 
Desde a criação da Justiça do Trabalho, os juízes procuravam alcançar um difícil equilíbrio diante dos conflitos entre empregados e empresas. Nas disputas em torno da pauta econômica, de forma geral, buscava-se um meio termo entre os índices de reajuste reivindicados pelos trabalhadores e aqueles propostos pelos patrões. Os juízes tinham certa margem para estabelecer os reajustes considerando os índices de aumento do custo de vida, levantados pelos órgãos oficiais de estatística.
 
Com a nova política salarial, essa margem foi bastante reduzida e isso provocou uma reação da Justiça do Trabalho. Apesar de toda a pressão que o governo e os empresários exerciam, o TRT-2 declarou a inconstitucionalidade do artigo 2° da Lei 4.275/1965, justamente por limitar o poder normativo que exercia até então. A imprensa destacou que, por essa iniciativa, o TRT-2 teria recebido cartas, ofícios e telegramas de cumprimentos dos dirigentes sindicais de todo o estado de São Paulo.
 
No entanto, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) não teve o mesmo entendimento. Há registros de que sindicatos empresariais do estado de São Paulo recorreram e o TST reconheceu a constitucionalidade do artigo 2° da Lei de Dissídios Coletivos, obrigando todos os TRTs a respeitarem essa decisão. Segundo a historiadora Larissa Corrêa, o TST já havia se posicionado pela constitucionalidade da lei, por 11 votos a 4, em dissídio coletivo de âmbito nacional que envolveu a Petrobras e os petroleiros do Rio de Janeiro.

Jornal “A Tribuna”, de 23 de dezembro de 1965, descreve o posicionamento do TRT e do TST sobre a constitucionalidade da “Lei do Arrocho Salarial”. Fonte: acervo “A Tribuna”.

A mudança no posicionamento foi rapidamente sentida nos julgamentos do TRT-2, como no caso do dissídio coletivo n° 71/1966, envolvendo o Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários e a Companhia Docas de Santos.
 
O dissídio coletivo nº 71/1966
 
Em janeiro de 1966, o Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos firmou acordo coletivo com a Companhia Docas de Santos (CDS). A empresa concedeu, naquele início de ano, aumento salarial de 26% com base na Lei 4.275/1965.
 
O acordo era válido por um ano, mas, dois meses depois, o sindicato solicitou complementação do reajuste, que corresponderia “às reais necessidades dos empregados ou funcionários da empresa portuária suscitada, com base nas estatísticas referentes à elevação do custo de vida (…) de modo a atender, com suficiente salário, a subsistência própria e de suas famílias”.
 
Quem recebeu a ação foi a juíza substituta da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos, Giselda Lavorato Pereira (uma das primeiras magistradas do TRT-2 e que havia atuado como diretora de secretaria na década de 1940). Lavorato Pereira, na tentativa de conciliação, propôs aumento adicional de 14%. O sindicato aceitou a proposta, mas a defesa da CDS rejeitou o acordo, apoiando-se nas normas estabelecidas pela política salarial.
 
No tribunal, apesar de o relator Roberto Barreto Prado ter votado pelo reajuste adicional de 10%, o dissídio foi julgado improcedente pela maioria. Além de ter acolhido o argumento inicial da defesa, o acórdão se baseou no recente Decreto-Lei 15/1966, que reforçava a vedação já expressa na Lei dos Dissídios Coletivos impedindo a “concessão de qualquer aumento ou reajuste salarial, antes de decorrido um ano do último acordo”.
 
Para Larissa Corrêa, “Se nos dois primeiros anos da ditadura civil-militar o TRT de São Paulo questionou a constitucionalidade da Lei 4.725/1965, por entender que ela restringia o poder normativo da Justiça do Trabalho, nos anos seguintes, ele atendeu às decisões da corte superior, sobretudo a que dava legalidade aos decretos baixados pelo Poder Executivo”.
 
Interessante notar que, ao contrário da 2ª instância, a Junta de Santos acolheu a reivindicação de revisão salarial por meio da proposta de conciliação, mesmo com toda a legislação restritiva da política salarial do governo. Para Corrêa, havia por parte dos juízes uma “preocupação com o desequilíbrio causado pela disparidade da elevação do custo de vida”. É possível que tenha sido o caso da juíza lotada na 1ª instância, mais próxima da realidade vivida pelos portuários e menos próxima à pressão exercida pelos militares.
 
O processo seguiu para o TST. No recurso ordinário, o advogado do sindicato, Raphael Sampaio Filho, expôs o drama vivido pelos trabalhadores santistas com a escalada da inflação na cidade: “As condições de subsistência atualmente na cidade de Santos, para não se referir ao que ocorre no país, estão à vista de qualquer pessoa que queira ver o que na realidade está passando, – custo de vida caríssimo, bem mais agressivo do que o da Capital ou de qualquer outra cidade do Estado. É bastante, para isso, fazer-se um confronto do preço de artigos essenciais ao vestuário, alimentação, transporte e moradia, não sendo de mister qualquer prova, pois é notório e ninguém o contesta, que nesta cidade tudo está pela hora da morte”.
 
Citando a Constituição de 1946, o advogado criticou o arcabouço jurídico que sustentava a política salarial do governo e exortou os ministros do TST a resgatarem o poder normativo usurpado pelo regime: “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano. A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social. Ante tais fundamentos, todas as leis promulgadas com a finalidade de cercear as majorações salariais não apresentam conteúdo jurídico e social, não traduzindo as necessidades do povo em geral e muito especialmente dos que trabalham e produzem. Que este Egrégio Tribunal Superior assuma, pois, as eminentes funções de legisladores neste instante de angústias e de esperanças”.
 
Apesar do apelo, o TST negou provimento ao recurso, também se baseando nas leis e decretos da política salarial. Apesar da resistência inicial, o governo conseguia avançar em seu plano de neutralização da Justiça do Trabalho nos dissídios de natureza econômica.
 
No entanto, as Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos continuavam a expressar as inquietações de seus juízes diante dos efeitos do arrocho salarial. Em relatório enviado ao TRT-2, o juiz João Crisóstomo Martins Ferreira lamentou as limitações impostas ao poder normativo da Justiça do Trabalho:
 
“O dissídio teve os trâmites legais e a decisão, atualmente subordinada às diretrizes administrativas do Executivo, deixa esta presidência impossibilitada de qualquer outro provimento, pois não tem condições para estipular conscientemente as normas de uma decisão coletiva que, atualmente, é praticamente administrativa e determinada pelo Executivo”.
 
João Crisóstomo Martins Ferreira, magistrado do TRT-2
 

Recorte do Jornal “A Tribuna”, de 21 de novembro de 1968, em que o juiz João Crisóstomo Martins Ferreira critica a política salarial do governo e a diminuição do poder normativo da Justiçado Trabalho. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Em outro momento, ao comentar a falta de entendimento entre o Sindicato dos Enfermeiros e os hospitais, o juiz fez uma crítica contundente da política salarial. “No seu entender o reajuste pleiteado pelos empregados (50%) é o que realmente traduz a realidade, porque entende esta presidência que todos os órgãos administrativos quando apresentam esses estudos sobre aumento do custo de vida, produtividade e outros quejandos, tomam o empregado como um número a mais na estatística e não como um ser humano que precisa satisfazer as suas necessidades primordiais de sobrevivência, porque as demais há muito que foram retiradas. Dentro da diretriz econômica seguida pelo Governo o empregado entra como uma parcela dentro da relação custo de produção como se fosse mais uma peça da máquina de produção em série. O resultado, evidentemente, não se fez esperar e é o próprio Governo que reconhece ter havido um ‘achatamento salarial’ para acompanhar a verdadeira denominação dessa política, que é o arrocho salarial. O homem, especificamente o empregado e sua família, não é máquina nem peça de um aparelho produtor de lucro e produção, mas um ser humano com suas necessidades instintivas e racionais que não podem ser ignoradas. Se assim não entendem as autoridades competentes, coloque-se o empregado dentro da parcela matemática a que foi igualado e lhe dê o aumento baseado na Lei 4.903/1965 (que alterou a Lei 4.725/1965), tão cara aos empresários” (“A Tribuna”, 21/11/1968).
 
Esse desabafo do juiz-presidente da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos mostra que, apesar de ter ocorrido uma sensível redução do poder normativo da Justiça do Trabalho durante os primeiros anos do Regime Militar, esse processo não se deu sem questionamento e resistência.
 
A Companhia Docas de Santos, sua relação com o Estado e com o golpe civil-militar de 1964
 
Criada em 1888, a Companhia Docas de Santos foi concessionária do Porto de Santos durante 92 anos (em 1980, a empresa estatal CODESP assumiu a administração das instalações portuárias). Ao longo de sua história, a empresa manteve uma relação de dependência com o Estado, inclusive sendo isenta do pagamento de impostos durante toda sua existência. Baseando-se na produção bibliográfica sobre o tema, a historiadora Elaine de Almeida Bortone afirma que, durante toda a história da empresa, a Companhia obteve privilégios:
 
“A CDS nasceu atrelada ao Estado, ou seja, germinou a partir do aporte de capital estatal, sem demandar de seus proprietários o capital financeiro imprescindível para alavancar o empreendimento produtivo. Além do fato do investimento inicial ter se transformado no único aporte de capital que a empresa recebeu para garantir seu funcionamento e seu crescimento, os lucros obtidos com as transações comerciais e a superexploração do trabalhador, não eram reinvestidos na empresa. Ao longo do séc. XX tal situação não se alterou e se acentuou na ditadura empresarial-militar quando foram baixados inúmeros decretos e leis que continuaram garantindo privilégios”.
 
Faoro, 2002; Leal, 1997; Gonçalves, 2000


Trabalhadores da CDS diante do primeiro bloco de granito utilizado no prolongamento do cais, em 1901. Foto: revista Estrela Azul/Novo Milênio.

A empresa foi fundada por Candido Gaffrée e Eduardo Pasalin Guinle. Os dois eram sócios de uma loja de tecidos no Rio de Janeiro e venceram, em 1888, a concorrência para a construção e exploração do porto de Santos. Cerca de trinta anos depois, a família Guinle assumiu o controle da empresa, administrando-a até o fim da concessão. Seu principal expoente foi Cândido Guinle de Paula Machado.
 
Dono não apenas da CDS, mas de uma enorme quantidade de empresas dos mais variados segmentos econômicos, Cândido Guinle foi um dos principais idealizadores e financiadores do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), organização empresarial que atuou na desestabilização do governo João Goulart e na articulação do golpe civil-militar de 1964.


Panfleto institucional do IPES. Fonte: fundo IPES/Arquivo Nacional.

Surgido dois meses após a posse de João Goulart, o IPES se dizia uma “entidade apolítica” e “sem fins lucrativos, de caráter filantrópico e com intuitos educacionais, sociológicos e cívicos”. Segundo seu estatuto, pretendia estimular a livre empresa e “o fortalecimento do regime democrático do Brasil”. Para isso, atuaria a partir do estudo dos problemas brasileiros e da apresentação de soluções.
 
De acordo com Bortone, os estatutos do IPES ocultavam sua verdadeira identidade. O instituto teria surgido com o objetivo de reunir frações do empresariado (multinacional e associado) e os militares “em uma oposição que pudesse desestabilizar, esvaziar e deter o governo de João Goulart e as forças sociais que o apoiavam”. 
 
Para alcançar seus objetivos, o IPES se utilizou de diversos estratagemas, sobretudo divulgando campanhas ideológicas na grande mídia, realizando congressos, financiando outras entidades golpistas, buscando a cooptação de adeptos entre “estudantes, professores, trabalhadores, artistas, igreja, Forças Armadas, universidades, escritores, políticos, empresários, donas de casa, etc”.

À esquerda, publicação anticomunista editada pelo Exército Brasileiro e distribuída pelo IPES antes do golpe de 1964. Fonte: acervo pessoal de Camila Djurovic/Memorial da Resistência de São Paulo. À direita, panfleto de candidato a deputado estadual pelo partido conservador União Democrática Nacional (UDN) patrocinado pelo IPES/IBAD nas eleições de 1962. Fonte: fundo IPES/Arquivo Nacional.

O financiamento para a fundação do IPES foi garantido por um grupo relativamente pequeno de empresas: Indústria e Comércio de Minério (ICOMI), Refinaria e Exploração de Petróleo União, Listas Telefônicas Brasileiras S.A., Serviços de Eletricidades S.A. (LIGHT), Casa Masson do Rio de Janeiro, Construtora Rabelo S.A e Companhia Docas de Santos (CDS).
 
No entanto, o funcionamento e a realização das atividades do IPES foram sustentados financeiramente por muitas pessoas físicas, civis e militares, por fundos norte-americanos, pela Agência Central de Inteligência americana (CIA) e por cerca de 440 empresas privadas, nacionais e internacionais. Entre essas empresas estavam, além da Companhia Docas de Santos, o Banco Boavista e a Companhia Artes Gráficas Indústria Reunidas (AGIR), ambas de propriedade de Cândido Guinle.
 
Retribuindo o apoio dado pela CDS, o IPES produziu e disseminou o documentário “Portos Paralíticos” e publicou o artigo “Aspectos econômicos do problema portuário”, de autoria de Cândido Guinle, os quais tentavam responsabilizar o governo João Goulart pelos problemas de funcionamento dos portos, incluindo o de Santos.
 
Depois do golpe civil-militar, o caminho estava aberto para que os quadros e aliados do IPES ocupassem espaços na máquina estatal e implementassem medidas políticas e econômicas em benefício de suas empresas. A Companhia Docas de Santos seria uma das mais beneficiadas nessa nova fase. Para garantir isso, a empresa, que já havia contribuído para a deposição do governo, iria reforçar ainda mais os laços de dependência com o Estado, inclusive atuando cotidianamente em colaboração com os órgãos de repressão para derrotar qualquer tentativa de resistência de seus funcionários e de seus respectivos sindicatos ao novo regime.
 
O golpe, a invasão dos sindicatos e as prisões: terror sobre o cais

O golpe de 1964 se deu de forma implacável na cidade de Santos. Já no dia 1° de abril, diversos sindicatos amanheceram ocupados por militares e forças policiais. Qualquer um que se encontrasse nas entidades era preso de forma arbitrária, fossem dirigentes sindicais ou seus associados. Não apenas sindicatos foram invadidos. Sindicalistas foram procurados dentro de suas casas, sendo alguns presos diante de suas famílias. Em depoimento à Fundação Arquivo e Memória de Santos, o portuário aposentado, Antônio Rodrigues, relata sua experiência nesse dia: “Eu saí de casa e quando vinha chegando na General Câmara, já um companheiro me chamou e disse: ‘Antoninho, você vai pro Sindicato? Não vai, porque todo mundo foi preso lá. O Sindicato foi lacrado’. (…). Conversei com os doqueiros pelas esquinas, por tudo quanto foi lugar, sem ir em casa, porque aí eu já tomei conhecimento que a minha casa tinha sido invadida (…)”.

Polícia invade o Sindicato dos Portuários de Santos, em abril de 1964. Fonte: Memorial da Democracia.
 
 
Recorte do jornal “A Tribuna”, de 12/2/66. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.   Planilha de identificação do DOPS/DEREX por ocasião da prisão de Antônio Rodrigues em 1971. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.

Funcionário da Companhia Docas de Santos desde os 15 anos de idade, Antônio era o então secretário do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, um dos mais atuantes da região. Foi um dos primeiros a ser invadido e ter sua diretoria destituída. A repressão se concentrou principalmente no movimento sindical portuário. Dos 34 sindicatos existentes na Baixada Santista, 22 sofreram intervenção, sendo que 16 representavam categorias que atuavam na atividade portuária.


Jornal “A Tribuna”, de 07 de abril de 1964, descreve a perseguição da polícia aos sindicalistas de Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

O movimento sindical em Santos sempre foi bastante combativo e era temido por aqueles que articularam o golpe. A existência do Fórum Sindical de Debates (FSD), que reunia e organizava a luta dos sindicatos da região, e o histórico recente de muitas greves, inclusive de solidariedade, reforçaram a preocupação dos militares com a possibilidade de resistência à deposição de Goulart. O coronel Antônio Erasmo Dias revelaria mais tarde que houve certa inquietação com os destinos do golpe em Santos: “Santos foi onde a revolução correu maior perigo, maior risco. A cidade era como um ponto de partida, a própria origem da revolução. Porque aqui o esquerdismo adquiriu uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. Durante um ano, não houve um dia em que não tinha uma greve”.
 
E de fato houve, na Baixada Santista, uma tentativa de reação ao golpe assim que foi deflagrado. O trabalho no porto foi paralisado, assim como no serviço de bondes de Santos, nos trens da estrada de ferro Santos-Jundiaí, na Refinaria Presidente Bernardes e na Cosipa, em Cubatão, entre outros. No entanto, a consolidação do golpe nacionalmente e a repressão contra os sindicatos e seus dirigentes acabou por derrotar cada um desses focos de resistência.
 
O IPM da Orla Marítima: instalação nas dependências da Companhia Docas de Santos
 
A invasão de sindicatos e a prisão de seus dirigentes contribuíram para a desarticulação da resistência ao golpe. Esse foi apenas o ponto de partida de um plano mais ambicioso que visava derrotar o movimento sindical e subjugar seus dirigentes de uma forma mais duradoura. Para isso, os militares lançaram mão da nomeação de interventores na maior parte das entidades sindicais e da criminalização de suas antigas lideranças. Esse processo de perseguição teve início justamente com a invasão de sindicatos durante o golpe e resultou na criação de verdadeiros tribunais de exceção nos anos seguintes. Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, a apropriação dos documentos serviu “de instrumento para que o governo instaurasse Inquéritos Policiais Militares (IPMs) contra sindicalistas, fundamentando-os em várias acusações, inclusive corrupção”. Posteriormente, essa documentação auxiliou a fundamentar a prisão de várias lideranças sindicais.
 
A instauração de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) se deu de forma generalizada por todo o país. Em Santos, esse procedimento apresentou uma particularidade, que demonstra um exemplo da colaboração entre empresas e militares durante a ditadura. Criado para perseguir as lideranças sindicais que protagonizaram a onda de greves ocorridas no porto durante o governo João Goulart, o chamado IPM da Orla Marítima não foi instalado em qualquer prédio oficial, mas nas salas da Divisão de Pessoal da Companhia Docas de Santos.


Jornal “A Tribuna”, de 26 de junho de 1964, informa que IPM funcionava nas salas da Divisão de Pessoal da Companhia Docas de Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Um dos indiciados no IPM da Orla, o portuário Ângelo Oswaldo Mastelini, revelou ter sido interrogado nas dependências da empresa: “Chamava a gente, levava lá para o comando, deixava a gente lá. Vinha um e fazia uma pergunta; vinha outro e trazia a gente aqui para o escritório da Companhia Docas. Aquela tortura danada! Aquelas ameaças!” (FAMS, 1997, p. 25).
 
No total, foram mais de 400 depoimentos tomados na sala de Divisão de Pessoal da CDS, que resultaram no pedido de prisão preventiva de 127 trabalhadores “por comunismo e subversão”. A maioria dos indiciados pertencia às diretorias dos principais sindicatos da área portuária, incluindo o dos estivadores, dos empregados na administração portuária e dos operários em serviços portuários.
 
Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade (2013, vol. II, p.65), a vinculação aos IPM’s inviabilizou a vida de uma enorme quantidade de trabalhadores. No caso do IPM da Orla Marítima, muitos dos sindicalistas envolvidos já sofriam as consequências dessa associação antes mesmo da conclusão do inquérito. Por um lado, eram afastados do trabalho pelas empresas, que procuravam demiti-los via Justiça do Trabalho. Por outro lado, ficavam à mercê da violência física e psicológica, a exemplo da que ocorreu no famigerado navio-presídio Raul Soares.
 
A prisão no navio-presídio Raul Soares
 
Com a consolidação do golpe, os locais de detenção estenderam-se além das tradicionais celas de quartéis, delegacias e prisões. O encarceramento massivo e a tortura foram observados também em estádios de futebol, como o Caio Martins, em Niterói, e o Ypiranga Futebol Clube, em Macaé, além de navios como o Princesa Leopoldina, no Rio de Janeiro, e o Raul Soares, em Santos.
 
Rebocado do Rio de Janeiro, o navio chegou em Santos em 25 de abril de 1964, onde aproximadamente 500 presos políticos foram detidos e submetidos a condições desumanas.

Navio Raul Soares sendo rebocado. Fonte: acervo Memorial da Resistência de São Paulo.

Para o coronel Erasmo Dias, a utilização de um navio-presídio não se justificava pela necessidade de mais espaço para receber os presos políticos. Apesar do crescente número de prisões arbitrárias, o objetivo principal do Raul Soares era, antes de tudo, provocar um efeito psicológico nos trabalhadores do cais.
 
A imagem daquele navio encalhado, onde as lideranças sindicais estavam detidas, incomunicáveis e subjugadas, simbolizava, aos olhos dos trabalhadores do porto, a derrota de um movimento que havia sido responsável por grandes conquistas nos anos anteriores.
 
Dentro do navio, sargentos que haviam se insurgido contra o golpe, professores, políticos, advogados, trabalhadores de várias categorias, sobretudo os portuários, eram humilhados e submetidos a condições desumanas. O depoimento do portuário Afonso Neves Guerra expressa a situação degradante vivida nas dependências do navio:
 
“Eles, para obrigar o pessoal a confessar, então começaram a torturar. (…) Tinha pessoal que eles fechavam no frigorífico, que estava desativado, mas não tinha respiração. (…) Era na parte baixa do navio; ele tinha água, dava água mais ou menos pelo tornozelo. O pessoal, para dormir, tinha que ficar na escada de acesso, sentado. (…) Alguns, eles colocaram na estufa do navio, que era do lado da caldeira; ali dava 48, 50 graus durante o dia. Outros, eles fecharam nas privadas. Um companheiro nosso ficou fechado seis meses dentro de uma privada, que eles alegaram que o rapaz era tesoureiro do Partido Comunista. (…) Eu fiquei dentro de um camarote, fiquei os seis meses no camarote. (…) Fiquei dois dias no frigorífico. (…) Não se sabia o que ia acontecer, quer dizer, aquelas ameaças todo dia (…). Ficamos incomunicáveis, sem assistência jurídica, sem visita da família” .
 
FAMS, 1997, p. 23

 
Foto da planilha de identificação de Afonso quando foi preso. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.   Ficha do prontuário de Afonso Neves Guerra no DOPS que registra sua prisão no Raul Soares. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.
 
Há diversos outros relatos sobre os eventos terríveis ocorridos na embarcação. Um deles é do jornalista Nelson Gatto, que publicou, em 1965, um livro sobre aquilo que viveu no interior do navio. Quase todos os exemplares de seu “Navio presídio: a outra face da ‘revolução’” foram apreendidos pelo regime. Outro livro sobre o caso, “Raul Soares: um navio tatuado em nós”, foi escrito pela jornalista Lídia Maria de Melo, filha do sindicalista Iradil de Santos Melo, também preso na embarcação. Lídia também colaborou na pesquisa para o documentário “Nau insensata”, que reúne imagens de arquivo e depoimentos de outros portuários detidos no navio.

“Navio Presídio”, de Nelson Gatto (1965) e “Raul Soares: um navio tatuado em nós”, de Lídia Maria de Melo (1995).

Documentário “Nau Insensata”, de Cristiano Sidoti (2014).
 
Já o juiz trabalhista Walter Cotrofe, em depoimento ao projeto de História Oral do TRT-2, trouxe um relato bastante revelador sobre o clima de tensão que pairava sobre as Juntas de Conciliação e Julgamento quando os trabalhadores detidos nos navios participavam de audiências:
 
“Fato marcante ocorrido nessa minha época lá em Santos, eu diria que está relacionado à Ditadura Militar, isso porque sindicalistas presos ao tempo desse evento, muitos foram recolhidos ao navio-presídio Raul Soares. E o que nos causava desconforto é que esses sindicalistas, muitos deles reclamantes, eram trazidos a bordo desse navio-presídio sob escolta de fuzileiros navais empunhando metralhadoras, fuzis…fuzileiros esses que ficavam à porta das salas de audiências, no sentido de, penso eu, evitar qualquer tentativa de fuga do presidiário ali presente como reclamante. Tiravam-lhe as algemas antes do ingresso na sala de audiência, mas era uma situação tensa, porque embora, claro, esses fuzileiros não interferissem em nosso trabalho, mas só a presença deles fortemente armados à sala de audiências já era um desconforto”.
 
Walter Cotrofe, magistrado do TRT-2


Depoimento de Walter Cotrofe ao Projeto História Oral, produzido pela Secretaria de Comunicação Social do TRT-2 em 2015.
 
Além de presos e torturados, muitos desses trabalhadores se viram sem meios para sustentar a si próprios e suas famílias, antes mesmo de serem libertados em outubro de 1964. Da lista de presos que foram detidos no Raul Soares, pelo menos 26 portuários foram demitidos pela Companhia Docas de Santos e buscaram na Justiça do Trabalho seu direito à reintegração.
 
As demissões e a luta dos trabalhadores na Justiça do Trabalho pela reintegração
 
A Companhia Docas de Santos soube aproveitar o clima pós-golpe para perseguir os dirigentes e ativistas sindicais que pertenciam ao seu quadro de pessoal. Além de ter cedido suas instalações para a realização de interrogatórios, a empresa utilizou todos os meios para demitir esses funcionários.
 
Boa parte desses trabalhadores já possuía muitos anos de serviços prestados à Companhia, o que garantia, a partir dos dez anos de contrato, o direito à estabilidade no emprego. No caso desses trabalhadores, a empresa precisava abrir inquérito judicial para que a Justiça do Trabalho confirmasse as demissões.
 
Uma das principais alegações da CDS para demitir os funcionários estáveis era a acusação de abandono de emprego. Sabendo que muitos sindicalistas haviam fugido com a deflagração do golpe, a empresa utilizou essa ausência forçada ao trabalho para requerer sua demissão.
 
Para os trabalhadores que se encontravam presos, a empresa utilizou como justificativa para demissão o mero indiciamento no IPM da Orla Marítima. Além disso, o departamento jurídico da Companhia alegava falta grave, mau procedimento, indisciplina ou insubordinação para caracterizar a participação desses sindicalistas nas greves ocorridas durante o governo deposto.
 
Para a empresa, já era motivo suficiente para demissão a vinculação a organizações sindicais proscritas pelo novo regime. No caso da demissão de Amaury Teixeira Leite, por exemplo, a Companhia alegou o fato do funcionário ser dirigente do Sindicato dos Operários “desde 1959, entidade filiada ao Fórum Sindical de Debates, à União dos Sindicatos da Orla Marítima, ao Comando Geral dos Trabalhadores, ao Pacto de Unidade de Ação, organizações consideradas subversivas pelas autoridades militares” (“A Tribuna”, 15/6/1968).

 
Foto de Amaury encontrada no prontuário do DOPS. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.   Ficha de Amaury em seu prontuário no DOPS registrando sua destituição do sindicato, a prisão no Raul Soares e sua vitória na 1ª Junta de Santos. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.
 
Por outro lado, os advogados dos trabalhadores procuravam desmontar todas as alegações da empresa, principalmente confrontando as demissões enquanto prática de perseguição àqueles que foram derrotados pelo golpe. Esse argumento era reforçado pelas provas que demonstravam não ter ocorrido punições da empresa a esses funcionários no período anterior.
 
Segundo o advogado Eraldo Aurélio Franzese, a atuação da empresa era injusta, desumana e covarde, pois se aproveitava da vitória do golpe para se desvencilhar de trabalhadores que, antes, não tinha coragem de punir. Citando parecer do juiz Hélio Tupinambá Fonseca em outro processo, o advogado destacou que “a Justiça não foi criada para amparo a vindita (vingança)”.
 
Em outro caso, Franzese sustentou que o ex-presidente do Sindicato dos Portuários, Manoel de Almeida, jamais sofrera uma punição e que a relação entre a empresa e o sindicato era amistosa, lamentando que “a Docas se tenha servido da Revolução para se ver livre de empregados nos quais tinha receio de tocar e até enaltecia”.
 
Quanto à acusação de abandono de emprego, o advogado demonstrou com provas documentais que Manoel precisou resguardar sua integridade física, tendo em vista que logo depois do golpe o sindicato que presidia sofrera intervenção e que, segundo a imprensa, estava sendo “caçado pela polícia como se fosse um animal selvagem”. Seria provado nos autos que a própria polícia da CDS estava no encalço do sindicalista, tendo mobilizado todo seu pessoal. Manoel só se entregou quando o Capitão dos Portos garantiu sua integridade. Quando posto em liberdade, requereu imediatamente sua reintegração à empresa, demonstrando que não tinha a intenção de abandonar o emprego.


Recorte do jornal A Tribuna encontrado no prontuário de Manoel de Almeida no DOPS. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.


Planilha de identificação de Manoel de Almeida, preso por crime contra a segurança nacional. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP
 
A tramitação da ação de Manoel é um exemplo que demonstra a variedade de posicionamentos adotados entre as instâncias da Justiça do Trabalho nos pedidos de reintegração. A 1ª Junta não acatou os argumentos da empresa, mas considerou que o retorno do trabalhador à CDS não seria apropriado, determinando apenas o pagamento de indenização e dos salários atrasados. Manoel recorreu e o TRT-2 reconheceu seu direito de retorno ao trabalho. No entanto, o TST converteu a reintegração em indenização.

Recorte do jornal “O Diário”, de 21 de junho de 1966, relata a decisão da 1ª Junta. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.

A própria decisão em primeira instância destoa do posicionamento adotado pelas juntas de Santos na maioria das sentenças. Os juízes trabalhistas da cidade geralmente determinavam a reintegração com o pagamento de indenização e de todos os direitos, representando para esses trabalhadores um primeiro alento depois de tantas arbitrariedades sofridas.
 
Na fundamentação das sentenças, esses juízes expressaram sua concordância com os argumentos levantados pelos advogados trabalhistas, principalmente em relação ao caráter político e persecutório das demissões promovidas pela CDS. No julgamento do pedido de reintegração do portuário Ricardo Bonfanti, o juiz da 2ª Junta, Eldah Ebsan Menezes Duarte destacou que: “No caso dos autos, como é notório, motivos eminentemente políticos ditaram o despedimento do reclamante (…). Com o advento do novo regime, como sói acontecer, caíram em desgraça aqueles que viviam, de um modo ou de outro, sob a proteção do ‘status quo’ anterior. Aí então teve início o processo punitivo pelos atos anteriores”.
 
Já no pedido de reintegração de Nelson Fructuoso Amado, a 1ª Junta lembrou que a CDS acompanhou as ações do funcionário quando do acontecimento das greves e não tomou nenhuma atitude no momento em que elas ocorreram: “não quis então, ou não ousou, apurar devidamente a responsabilidade pessoal dele pelos fatos que agora lhe atribui…”. Sobre o fato de Nelson ter sido indiciado no IPM, a sentença assinala que esse fato “não constitui falta grave prevista pela CLT como motivo hábil para dar ensejo ao despedimento de um empregado estável”.

 
Foto de Nelson quando foi preso em 1964. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.   Recorte do jornal “A Tribuna”, de 26 de junho de 1967, que trata de sua vitória na 1ª Junta de Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.

O posicionamento das juntas de conciliação e julgamento de Santos contra as ações da CDS foi decisivo para os trabalhadores perseguidos, não apenas porque significaram uma vitória inicial na luta pela reintegração ao trabalho e pelo reconhecimento dos danos causados pelas demissões arbitrárias. As sentenças proferidas pelos juízes de primeira instância também podem ter sido determinantes para a absolvição de muitos trabalhadores nas Justiças Criminal e Militar.
 
Foi o que provavelmente ocorreu no julgamento realizado pelo Conselho Permanente de Justiça da II Auditoria de Guerra, quando foram inocentados 15 portuários indiciados no IPM da Orla Marítima. O titular dessa Corte, juiz José Tinoco Barreto, ao comentar sobre as consequências nocivas das demissões arbitrárias, revela que houve em alguma medida a influência das sentenças trabalhistas na absolvição dos trabalhadores.
 
“Não é justo, nem racional que os empregados fiquem afastados de suas funções, criando gravíssimos problemas de ordem social. O justo, o legal, até aquilo que o próprio direito material afirmaria, seria esses homens continuarem percebendo seus vencimentos, e trabalhando até o pronunciamento da Justiça. Tanto isso é verdade, que eu tive o conhecimento de que muitos empregados foram considerados inocentes na Justiça do Trabalho, e reintegrados em suas funções, ou então indenizados, recebendo seus vencimentos. Ora, no caso em tela criou-se um problema social antes da sua vitória na Justiça do Trabalho. Agora, o ressarcimento nunca vai apagar aqueles maus pedaços que eles passaram, quando estavam afastados de suas funções”.
 
José Tinoco Barreto


Reportagem do jornal “A Tribuna”, de 21 de setembro de 1967, sobre a absolvição de portuários na Justiça Militar. Juiz teria levado em consideração as decisões da Justiça Trabalhista. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Isso é importante porque muitas ações de reintegração foram apreciadas pelas Justiça do Trabalho de Santos antes que esses trabalhadores fossem julgados pela Justiça Criminal ou Militar. Há casos inclusive de trabalhadores que já haviam saído vitoriosos nas três instâncias da Justiça Trabalhista, o que pode ter contribuído ainda mais para sua absolvição na esfera penal. É o caso, por exemplo, do portuário Antônio Ferreira da Silva, trabalhador estável da CDS, dispensado por ter sido indiciado no IPM da Orla e prisioneiro do navio Raul Soares. Foi o primeiro caso dessa natureza julgado pela 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos, que reintegrou o trabalhador por unanimidade. A sentença foi confirmada pelo TRT-2 e pelo TST antes do julgamento da II Auditoria Militar. Antônio foi um dos 15 absolvidos.
 
No entanto, nem sempre as instâncias da Justiça Trabalhista tiveram o mesmo entendimento no julgamento dos pedidos de reintegração. Podemos afirmar, com base nos casos pesquisados, que, na grande maioria deles, as Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos se posicionaram a favor dos trabalhadores demitidos. Nas demais instâncias, percebe-se uma tendência a favor das reintegrações nos casos julgados até 1968. A partir do ano seguinte, é possível concluir que essa tendência se inverteu, com o TRT-2 e o TST reformando as sentenças proferidas na primeira instância.
 
Há um caso emblemático dessa mudança de entendimento nas instâncias superiores. Nelson Salinas Meira, ex-dirigente do Sindicato dos Operários Portuários, foi um dos 15 trabalhadores absolvidos pela II Auditoria Militar, mas isso não impediu que o TRT-2 negasse seu pedido de reintegração por entender que “a participação do dirigente na administração sindical foi desvirtuada com a finalidade de implantação da desordem, com promoção de repetidas greves e paralisações ilegais do trabalho, muitas de cunho político ou de solidariedade, caracterizando assim falta grave de mau procedimento”.


Trecho da ficha de Nelson Salinas Meira no DOPS, registrando sua absolvição pela Justiça Militar. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.


Recorte do jornal “A Tribuna”, de 3 de setembro de 1969, demonstrando novo posicionamento do TRT-2 em relação às reintegrações. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Ou seja, a decisão da Auditoria Militar que absolveu Meira, influenciada pelas sentenças trabalhistas a favor da reintegração, não foi determinante para o posicionamento da mesma Justiça do Trabalho. A argumentação do TRT-2, acatando as alegações da empresa para justificar as demissões, representa uma mudança brusca de entendimento sobre o tema, que seria adotado no julgamento de outros trabalhadores também absolvidos na esfera militar. O TST acompanharia a maioria dessas decisões.
 
Uma hipótese para tal mudança é o aumento da vigilância e da repressão exercidas contra a própria Justiça do Trabalho, concretizadas, por exemplo, pelo Ato Institucional n° 5. O AI-5 atingiu diretamente a Justiça do Trabalho de São Paulo, aposentando compulsoriamente os juízes Abraão Blay, Alfredo de Oliveira Coutinho, Carlos de Figueiredo Sá, Fernando de Oliveira Coutinho e até Hélio Tupinambá Fonseca, cuja aposentadoria a pedido já havia sido deferida dez dias antes. Ao depurar a Justiça do Trabalho, os militares pretendiam se livrar de juízes indesejados e, ao mesmo tempo, intimidar aqueles que permaneceram.


Ficha do DOPS referente a Abraão Blay, juiz do TRT-2 cassado pelo AI-5. Fonte: acervo DOPS Santos/APESP.

Ficha encontrada no Dossiê de Carlos de Figueiredo Sá no DEOPS SP. Fonte: acervo DEOPS SP/APESP.


Relatório elaborado pela Companhia Docas de Santos demonstra a colaboração da empresa com os órgãos de repressão na vigilância do juiz Carlos de Figueiredo Sá. Fonte: acervo DEOPS SP/APESP.
 
No entanto, se é certo que nesse período as instâncias superiores dificultaram a luta pela reintegração dos trabalhadores perseguidos, essa guinada não impediu que alguns trabalhadores conseguissem obter êxito no TRT-2 e no TST já nos anos 1970, mostrando que os militares não foram totalmente vitoriosos em sua ânsia de controle sobre a Justiça do Trabalho. Na primeira instância, isso fica ainda mais evidente.
 
O caso Jackson: sentença da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento denuncia tortura
 
Jackson de Oliveira Santos exercia a função de entregador de mercadorias no Departamento de Operações da Companhia Docas de Santos. Em 12 de agosto de 1968, quando saía do serviço, Jackson foi abordado por investigadores da Polícia Civil e por um agente da polícia da CDS. Nesse dia, Jackson não chegou em casa. À medida em que os dias se passavam sem qualquer notícia, a preocupação da família foi dando lugar ao desespero, principalmente quando seu carro foi encontrado abandonado em um posto de gasolina. Esse enredo, tão comum nos dias de hoje, tomou conta dos jornais da época e teria a participação crucial da Justiça do Trabalho de Santos em seu desfecho.
 
Jackson não foi o primeiro e nem o último trabalhador da Companhia Docas de Santos a ter desaparecido após abordagem policial. Em um período de três semanas, mais três funcionários da empresa sumiram em circunstâncias parecidas, levando o presidente do Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários, Amauri da Cruz Tiriba, a se manifestar. Em entrevista ao jornal “Cidade de Santos”, de 17 de agosto de 1968, o sindicalista alertou: “Se tal situação continuar, não poderemos garantir a tranquilidade dos serviços portuários e poderá ocorrer a paralisação do porto, independentes de nossa vontade, a não ser que a polícia explique o que está acontecendo”.


Prisões arbitrárias e desaparecimentos de portuários ganham as manchetes dos jornais. Fonte: Hemeroteca Digital Santista.

Na ocasião dessa declaração, havia ainda um funcionário desaparecido desde o dia 16 de agosto, sendo que “os dirigentes sindicais, depois de percorrerem todas as circunscrições policiais da cidade, inclusive o DOPS, Polícia Federal e Polícia Marítima, não conseguiram localizar o último portuário detido”.
 
Segundo Amauri Tiriba, os três outros portuários, incluindo Jackson, já estavam em suas casas. O jornal citava que um deles estava “com o pé esquerdo quebrado e ferimentos na espinha dorsal, por ter recebido choques elétricos”. Ainda segundo o jornal, Jackson não estava recebendo ninguém além dos familiares.
 
No dia seguinte à manifestação do sindicato, o delegado responsável pelo desaparecimento dos funcionários da CDS afirmou que havia uma investigação em curso, fruto de uma sindicância sigilosa realizada pela empresa e que fora encaminhada à polícia para a conclusão das apurações e a tomada de providências. Tal sindicância serviu de base para que o delegado mandasse prender os portuários para interrogatório.
 
Na mesma ocasião, o delegado negou a acusação de tortura, afirmando que todos os envolvidos teriam confessado seus crimes espontaneamente. Sobre Jackson, o delegado afirmou que fez questão de que “ele declarasse na presença do advogado se havia sofrido sevícias ou coação para falar”. Segundo o delegado, Jackson confirmou ter sido bem tratado e que não tinha queixas a fazer.
 
Nesse período, os jornais publicavam quase que diariamente reportagens sobre a investigação da polícia a respeito de furtos que estariam ocorrendo no porto, afirmando que os desaparecimentos teriam coincidido “com a descoberta de vultoso contrabando”. As matérias eram conclusivas a respeito da ocorrência dos supostos crimes, mesmo antes da conclusão das investigações ou do julgamento nas instâncias competentes, gerando muita insegurança entre os portuários.
 
Esse medo generalizado foi descrito quando as denúncias de tortura chegaram à Assembleia Legislativa de São Paulo. O deputado Oswaldo Martins, em protesto dirigido ao governador, declarou: “O clima reinante no porto é de terror, porque os trabalhadores permanecem sob tensão emocional, na expectativa de quem será o próximo a ser preso e espancado. Comunicou que, após a prisão, os trabalhadores, chefes de família e funcionários com 15, 20 e 25 anos de serviço na Cia. Docas, aparecem mutilados. Trata-se de ajudantes e fiel de armazéns, cargos de confiança, ocupados com homens que desapareceram de uma hora para a outra, e, quando retornam às suas residências, chegam mutilados, depois de passarem pelo ‘pau de arara’ e sofrerem choques elétricos”.


Jornal “Cidade de Santos”, de 20 de agosto de 1968, mostra que denúncias de tortura chegaram à Assembleia Legislativa de São Paulo. Fonte: Hemeroteca Digital Santista.
 
Os sindicatos também conseguiram o apoio do deputado Esmeraldo Tarquínio, que convenceu o chefe de polícia da Baixada Santista a determinar que os suspeitos ou as testemunhas fossem, a partir de então, intimadas por intermédio de seus sindicatos. Dessa forma, procurou-se evitar a continuidade das detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados no curso das investigações.


Para coibir novos desaparecimentos e casos de tortura, os portuários passaram a ser intimados por meio de seus sindicatos. Jornal ‘Cidade de Santos”, de 21 de agosto de 1968. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
 
Apesar de toda a repercussão do caso, a Companhia Docas de Santos ajuizou ação na Justiça do Trabalho para rescindir o contrato de Jackson, alegando “ato de improbidade, incontinência de conduta ou mau procedimento, e ato de indisciplina ou de insubordinação”. Se na época dos inquéritos policiais militares esses elementos foram utilizados para caracterizar a conduta de sindicalistas e justificar suas demissões, agora a empresa se valia do mesmo expediente para dispensar Jackson com base em confissões supostamente prestadas de forma espontânea.
 
A defesa do trabalhador contestou, alegando a nulidade de pleno direito, por vício insanável de coação. O exame de corpo de delito foi realizado quando Jackson conseguiu ser libertado da prisão, três dias depois de seu desaparecimento, constatando que seus depoimentos foram obtidos mediante tortura. O laudo apontou ferimentos nos lábios, equimoses nos punhos, ferimentos nos pés, ferimentos produzidos por fio elétrico e várias outras escoriações: “Juntamos o exame médico-legal visto que as lesões apresentadas eram prova insofismável da violência policial, entre os quais se encontrava um agente da própria empregadora. Covardemente agredido, torturado e ameaçado, foi em seguida obrigado a assinar não só na Polícia Civil, como também na empresa, declarações que não havia prestado. A prova da coação nas dependências da empresa era patente ainda por figurarem como testemunhas dois policiais, um da empresa e outro da Polícia Civil, sendo que o policial da empregadora orientou, desde o momento da prisão, toda a violência que o portuário foi vítima, insinuando e inclusive respondendo perguntas” (“A Tribuna”, 12/8/1969).
 
Vemos aqui mais um exemplo de que a Companhia Docas de Santos havia incorporado em seu cotidiano as práticas adotadas durante a perseguição imposta aos dirigentes e ativistas sindicais logo depois do golpe civil-militar. A prévia colaboração com os órgãos de repressão do Estado, inclusive no interrogatório de trabalhadores, era agora reeditada contra funcionários sem vínculo político-sindical. Qualquer um poderia ser alvo. Daí o clima de terror generalizado sobre o conjunto da categoria portuária.
 
Em audiência na 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos, Jackson revelou como se deu a colaboração entre a polícia e a empresa ao declarar “que sofreu as sevícias, e que foi conduzido no terceiro dia, depois de andar por várias delegacias, para a Companhia Docas, sob ameaça, onde prestou as declarações em aditamento” (“A Tribuna”, 12/8/1969).
 
Além do laudo médico, as testemunhas da empresa não confirmaram qualquer crime praticado por Jackson. A vítima do suposto crime, proprietário da mercadoria, declarou tê-la recebido sem violação ou falta, prejudicando o relatório policial que concluiu pela existência de furto. Ou seja, o crime denunciado pela empresa e divulgado durante semanas pela imprensa simplesmente não existiu.


Jornal “A Tribuna”, de 12 de agosto de 1969, publica a íntegra da fundamentação da sentença que determinou a reintegração de Jackson. O juiz João Crisóstomo Martins Ferreira denuncia a colaboração entre a polícia e a Companhia Docas de Santos na tortura do portuário. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
No dia 12 de agosto de 1969, exatamente um ano após o desaparecimento forçado de Jackson, o jornal “A Tribuna” publicou na íntegra a fundamentação da sentença proferida pelo juiz João Crisóstomo Martins Ferreira, da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos. Demonstrando sua indignação, o juiz justificou sua decisão de forma bastante contundente, questionando o método da tortura e o desvio de agentes pagos pelo Estado para atender aos interesses da empresa privada:
 
“Indubitável a existência de falta grave. Não, porém, a imputada ao requerido e sim aquela caracterizada pelo procedimento ilegal de todos que tomaram parte no inquérito, a saber: daquele que presidiu, e depôs como preposto da requerente, que admitiu as declarações do requerido como espontâneas, apesar dos fatos que antecederam e presença de elemento estranho, na pessoa do investigador de polícia na constituição do inquérito. Falta agravada pelo cinismo com que depôs, declarando ignorar a prisão ilegal do requerido e pretendendo convencer o Juízo de sua integridade profissional, tentando convencê-lo da inexistência dos atos abusivos que praticou. Faltas praticaram as testemunhas da requerente que aderiram a esse embuste carnaveleiro e para culminar vieram a Juízo e mais realistas que o rei, tiveram a petulância de declarar estar o requerido em estado normal, que o laudo médico contrariou cabalmente. Falta grave praticou o investigador policial que apesar de pago pelo Estado, se prontificou a desempenhar o triste papel de autoridade dentro dessa burla trágica. Enfim, da falta grave capitulada como crime, que deve ser cabal e totalmente provada e nada existe nos autos além do triste espetáculo fornecido pelos seus autores, que desmerecem qualquer sociedade que se diz civilizada”.
 
João Crisóstomo Martins Ferreira, magistrado do TRT-2 (“A Tribuna”, 12/8/1969)

 
Jornal “Cidade de Santos”, de 12 de agosto de 1969, informa vitória de Jackson na 1ª Junta. Fonte: Hemeroteca Digital Santista.   Jornal “A Tribuna”, de 10 de agosto de 1969, informa vitória de Jackson na 1ª Junta. Fonte: acervo “A Tribuna”.

Novamente, uma decisão tomada no âmbito da Justiça do Trabalho, além de ter produzido efeitos nos direitos do empregado, teria também reflexos em seu destino na esfera penal. Apesar de ter saído vitorioso na ação de reintegração, o pesadelo de Jackson ainda continuaria na Justiça Criminal. Procurando possíveis vestígios sobre a vida de Jackson depois do ocorrido, encontramos referências a sua participação em audiências criminais. Não era possível saber se se tratava do mesmo caso, até que localizamos uma cópia do processo n° 75/1970, julgado no Juízo Federal – Seção de São Paulo, no qual Jackson ainda respondia pelas acusações feitas pela Companhia Docas de Santos.
 
Um verdadeiro pesadelo, de fato, pois sua inocência apenas foi declarada pela Justiça Criminal em 8 de junho de 1977, quando as acusações foram consideradas, enfim, improcedentes também na esfera penal. Jackson havia juntado ao referido processo a certidão relativa à decisão proferida pela 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos. De acordo com o relatório da decisão essa certidão “registra que o réu se retratou em juízo, quanto à admissão da prática do ilícito, o que não foi simples expediente de defesa; o acusado teria sido seviciado por policiais arbitrários; outrossim, na reclamação trabalhista, obteve ganho de causa, sendo de se proclamar a inocência do réu, inclusive pela razão de que dois outros corréus, que seriam os ‘mandantes’, tiveram sua absolvição requerida pelo próprio Ministério Público”.


Jackson é inocentado na Justiça Criminal em junho de 1977, quase 8 anos depois de sua vitória na Justiça do Trabalho de Santos. Fonte: Arquivo Nacional.
 
Diante do caso emblemático de Jackson, cujo desaparecimento forçado mobilizou a atenção da imprensa e da sociedade, ficam evidentes as violações aos direitos humanos perpetradas pelo Estado e pela empresa privada. A atuação da Justiça do Trabalho, representada pela decisão da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos, revela-se como um contraponto necessário a essas violações, ao denunciar a prática da tortura e a colaboração entre a polícia e a Companhia Docas de Santos.

Medidas tomadas pelo governo e pela CDS contra os direitos dos trabalhadores
 
Com a prisão de sindicalistas, a intervenção nos sindicatos, a restrição ao direito de greve e o clima de terror e perseguição no cais, o governo militar e a Companhia Docas de Santos passaram a enfileirar uma série de medidas prejudiciais aos trabalhadores do porto. Os militares e a empresa, de forma coordenada, impuseram a retirada de direitos que haviam sido fruto tanto de conquistas recentes, garantidas durante o governo João Goulart, como de vitórias que resultaram da luta dos portuários ainda na década de 1930.
 
A princípio, os dirigentes do novo regime tentaram passar aos trabalhadores a ilusão de que seus direitos seriam preservados. Nessa fase de consolidação do golpe, era necessário evitar qualquer tipo de mobilização. Em entrevista à imprensa logo após o golpe, o então ministro do Trabalho, Arnaldo Sussekind, afirmou que “os acordos salariais entre empregados e empregadores estão automaticamente renovados à medida que forem vencidos e da maneira prevista, não devendo ocorrer nenhuma interferência governamental, como consequência do movimento revolucionário”.

 
Jornal “A Tribuna”, de 21 de outubro de 1964. Fonte: acervo “A Tribuna”.   Jornal “Correio da Manhã”, de 23 de junho de 1965. Fonte:
Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
 
No entanto, já em 1964 os trabalhadores do porto começaram a sofrer as consequências dessa intervenção. Em telegrama enviado ao presidente Castelo Branco, um deputado expressa o descontentamento dos portuários com resoluções da Comissão da Marinha Mercante que atingiam direitos garantidos pela CLT. Para o parlamentar, o general estaria “contrariando desse modo afirmações de V. Ex.ª de que, em hipótese alguma, seu governo tomaria medidas prejudiciais aos trabalhadores”.
 
Não demoraria para que qualquer esperança na manutenção dos acordos salariais caísse por terra. O Decreto-Lei 56.420/1965 anulou os acordos coletivos firmados entre o governo João Goulart e a Federação Nacional dos Portuários (FNP) nos anos de 1962 e 1963. Ato contínuo, a CDS deixou de cumprir todas as cláusulas acordadas. Foi o primeiro grande impacto nos direitos dos trabalhadores do porto. Para o historiador Fernando Teixeira da Silva, “o ano de 1965 foi para os doqueiros uma espécie de segundo golpe”.
 
Um clima de incerteza e angústia tomou conta dos trabalhadores, uma vez que todos os direitos negociados haviam sido revogados. O decreto determinara que o Ministério do Trabalho providenciasse a celebração de novos acordos ou convenções no prazo de trinta dias. Enquanto isso, quais normas substituiriam as cláusulas dos acordos de 1962 e 1963? Esperava-se que o acordo anterior, de 1961, cumprisse esse papel. Segundo a FNP, não foi isso o que aconteceu: “A ausência de normas, embora de caráter transitório, para disciplinar as relações de emprego para os trabalhadores portuários, gerou a maior confusão possível, uma vez que, na ausência de normas acordadas para disciplinar a prestação de serviços, as empresas se negavam a cumprir o acordo de 1961, que não fora objeto de referência de parte do Decreto 56.420/1965”.
 
Para piorar o clima de insegurança entre os trabalhadores, em meio às reuniões para a celebração dos novos acordos, o Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis enviou uma minuta pronta para ser assinada pelas Administrações Portuárias e pelos sindicatos das categorias profissionais. A FNP reagiu a esse desrespeito à negociação coletiva que estava em curso: “A essa altura, procuramos o Departamento, fazendo sentir às autoridades daquele órgão que a conceituação do termo ‘acordo’ é a de manifestação de vontade entre as partes interessadas; consequentemente, não poderia ser elaborada uma minuta-padrão, sem que as partes tivessem, pelo menos, prévio conhecimento de suas cláusulas. Não aceitamos os argumentos, o prazo fatal foi esgotado, sem que até a data vigente tenha sido celebrado qualquer acordo”.
 
Com esse vazio legal causado pela anulação dos acordos, começou a tramitar no Congresso o projeto do governo que tratava do regime do trabalho nos portos. Dirigentes sindicais conseguiram aprovar algumas emendas que asseguravam a manutenção de parte das conquistas que haviam sido suprimidas. No entanto, todas as emendas foram vetadas pelo presidente Castelo Branco, resultando na redação final da famigerada Lei 4.860/1965, que criou dois turnos de trabalho, diurno e noturno, com revezamento semanal.
 
Para não restar dúvidas sobre as intenções do governo em desrespeitar os instrumentos de negociação coletiva, o Decreto-Lei 5/1966 viria a considerar vencidos todos os acordos vigentes e firmados há mais de dois anos. Fazendo um balanço sobre esse período, a FNP explica que “o Poder Executivo baixou uma longa série de decretos-leis e conseguiu do Congresso Nacional, uma lei que, todos juntos, significaram a mais ampla derrocada das condições econômicas dos portuários, conseguindo reduzir o ganho da categoria profissional em mais de 50%”.
 
Entre as perdas enumeradas pela FNP estão a revogação de: férias remuneradas; adicional de insalubridade, periculosidade e nocividade; salário-chuva; quinquênio; indenização por aposentadoria ou morte; complementação da aposentadoria dos inativos; semana inglesa; jornada de 33 horas para pessoal técnico e de oficinas e remuneração de dirigentes sindicais pelas empresas. Já os direitos que não foram eliminados, foram drasticamente reduzidos, como: adicional de hora extra; 13° salário; salário-família; adicional noturno; adicional para serviço aos domingos; salário-produção, entre outros.
 
Para o historiador Fernando Teixeira da Silva, “o período que se seguiu ao golpe foi vivido como uma tragédia para muitos daqueles operários há muito familiarizados com a conquista de inumeráveis direitos. A partir daí, a luta voltava-se acima de tudo para a sua reconquista”.
 
Formas possíveis de luta
 
O cenário era extremamente desfavorável aos trabalhadores. Além de estarem praticamente impossibilitados de exercerem o direito de greve, suas entidades representativas eram dirigidas por interventores nomeados pelos militares. Qualquer iniciativa de luta direta em defesa dos seus direitos era desaconselhada ou repreendida pela direção dos sindicatos, fazendo com que a relação entre direção e base fosse permeada pela desconfiança.
 
Em assembleia da categoria, a fala do presidente do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, Antônio Bispo, revela tanto sua estratégia conciliatória quanto o descontentamento dos trabalhadores com seus dirigentes sindicais: “Preciso que a classe compreenda, permaneça com o espírito coeso e unido, dentro da maior harmonia e paz social e principalmente dentro da maior ordem e disciplina, em torno de seu sindicato, para um sindicalismo forte e um Brasil maior e não fique na faixa do cais ou nas esquinas verberando a direção do sindicato e dizendo que está acomodada e não defende os interesses da classe”.
 
Talvez o momento mais tenso dessa relação tenha ocorrido durante a deflagração da chamada “operação tartaruga”, um movimento de resistência dos portuários à nova jornada de trabalho imposta pela Lei 4.860/1965. O novo regime de trabalho reduziria a remuneração e submeteria os trabalhadores a jornadas extenuantes que previam o revezamento semanal entre horários diurnos e noturnos.
 
Um vereador da Arena, partido do governo, reconheceria mais tarde que a extensa e penosa jornada de trabalho era uma das causas do congestionamento verificado no porto, revelando em seu depoimento a degradação das condições de trabalho com o novo regime de trabalho: “Não é possível que o trabalhador, após uma semana de serviço noturno, trabalhando de 19h às 7h da manhã – 12 horas de serviço à noite – tenha força física suficiente para iniciar, na semana subsequente, nova etapa de trabalho, sem o sono reparador que o dia não lhe permite. Está fisicamente esgotado (…). Nunca houve ‘operação tartaruga’. As vantagens subtraídas do portuário pela Revolução e a consequente redução do seu ganho, além das más condições físicas e a falta de entusiasmo são as causas determinantes do fenômeno da baixa de produção (…)” (“A Tribuna”, 10/5/1968).
 
A documentação confirma na íntegra as informações destacadas pelo vereador, com uma única exceção: ao contrário do que disse, a operação tartaruga ocorreu de fato e representou uma das maiores demonstrações de resistência dos portuários santistas durante o regime militar. Logo no primeiro dia de vigência da Lei 4.860/1965, em 5 de janeiro de 1966, a operação foi deflagrada levando ao desespero os exportadores e inquietando as autoridades nacionais e locais.


Jornal “A Tribuna”, de 6 de janeiro de 1966, registra o início da operação tartaruga. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Os sindicatos, pressionados pela Companhia Docas de Santos e pela Capitania dos Portos, convocaram assembleias para tentar acalmar os ânimos. No Sindicato dos Operários Portuários, os dirigentes sindicais tentaram convencer os trabalhadores de que a continuidade do movimento traria mais repressão por parte do governo. Como alternativa, os sindicalistas propuseram “pedir ajuda ao cardeal Agnelo Rossi e, se isso não resolvesse, ir falar até com o papa Paulo VI”. Outra proposta foi a instauração de dissídio coletivo, mas os trabalhadores continuaram mobilizados.
 
A repressão não tardou a chegar. Dois dias depois da assembleia, o cais foi ocupado por fuzileiros navais fortemente armados. Mesmo com essa tentativa de intimidação, o movimento não foi totalmente coibido. No dia 27 de janeiro, mais duas medidas foram adotadas pelo governo: a instauração de um inquérito policial militar para apurar os responsáveis pela queda de produtividade no porto, além da publicação do Decreto-lei 3/1966, que visava enquadrar na Lei de Segurança Nacional os trabalhadores que escolhiam o caminho das lutas.


Fuzileiros navais ocupam o porto de Santos na tentativa de reprimir a operação tartaruga. Jornal “A Tribuna”, de 19 de janeiro de 1966. Fonte: acervo “A Tribuna”.


Inquérito policial militar passa a investigar a operação tartaruga e o Decreto-Lei 3/1966 enquadra na Lei de Segurança Nacional os trabalhadores que lutam por seus direitos. Jornal “A Tribuna”, de 28 de janeiro de 1966. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Com o decreto, seriam considerados atentatórios à segurança nacional os atos de “instigar, preparar, dirigir ou ajudar a paralisação de serviços públicos concedidos ou não ou de abastecimento”. O novo instrumento alterou a CLT para permitir a demissão por justa causa dos trabalhadores enquadrados nesses casos.
 
O decreto ainda modificou a natureza da guarda portuária, que até então cumpria um papel de segurança patrimonial das instalações portuárias. Continuou sendo remunerada pela CDS, mas passou a ser subordinada à Capitania dos Portos, vedando a seus membros qualquer vinculação ou atividade de caráter sindical. Segundo a historiadora Adriana Gomes Santos, a partir do Decreto 3/1966, “a Guarda Portuária passou a contratar ex-militares que vinham de dentro dos quartéis imbuídos das linhas básicas da chamada Doutrina de Segurança Nacional”.
 
Enfrentando o governo militar, a CDS, a Guarda Portuária e até mesmo os dirigentes das entidades sindicais, a operação tartaruga continuou, mas gradativamente perdeu sua força ao longo dos meses que se seguiram. Paralelamente a isso, os trabalhadores portuários continuaram a lançar mão de outras ferramentas e formas de luta, incluindo o acionamento da Justiça do Trabalho.
 
A limitação dos memoriais e a busca à Justiça do Trabalho
 
A repressão à operação tartaruga, a nova legislação restritiva e a vigilância mais ostensiva que passou a ser praticada pela Guarda Portuária, estreitaram ainda mais as possibilidades de mobilização por parte dos portuários. Por outro lado, os dirigentes sindicais estavam cientes de que sua gestão à frente das entidades enfrentava uma desconfiança crescente por parte dos trabalhadores. Para dar resposta a essa insatisfação e justificar suas posições, esses interventores subiram o tom na retórica, mas procurando sempre desviar os associados de ações de luta direta:
 
“(…) Os diretores dos sindicatos das categorias profissionais, que substituíram as antigas lideranças afastadas e perseguidas pelo governo de Castelo Branco, buscavam estratégias por meio dos dissídios coletivos e das ameaças de greve para conquistar melhorias para a classe trabalhadora e convencê-la da necessidade das intervenções sindicais e, consequentemente, da manutenção de seus cargos (…). As ameaças de paralisações, assim como as críticas direcionadas à política econômica do governo, pareciam mais uma tentativa desses dirigentes sindicais de mostrar aos trabalhadores que eles estavam defendendo os seus interesses, uma vez que suas demandas e seus descontentamentos com as medidas adotadas pelo governo eram divulgadas em forma de memoriais e nos jornais”.
 
CORRÊA, 2013, p. 273
 
Um desses memoriais foi endereçado pelos sindicatos das categorias portuárias ao governador de São Paulo, Ademar de Barros, logo após o anúncio de medidas repressivas contra a operação tartaruga. O documento solicitava a interferência junto às autoridades competentes diante dos efeitos da Lei 4.860/1965 na remuneração dos trabalhadores.

Dirigentes sindicais enviam memorial com reivindicações dos portuários a Ademar de Barros, governador de São Paulo. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
O manifesto começa valorizando as convenções coletivas entre sindicatos e administrações portuárias como expressão da vontade das partes e da “paz social, fator preponderante da produtividade” no setor portuário. Essas convenções, desde 1934 fixaram direitos como o pagamento dos serviços extraordinários que, ao longo do tempo, transformaram-se “num patrimônio da família de cada trabalhador”.
 
Segundo o memorial, a própria anulação dos acordos realizados entre o governo deposto e a Federação Nacional dos Portuários, por meio do Decreto 56.420/1965, corroborava a importância das convenções coletivas, essas não atingidas pela anulação. Interessante notar essa concessão realizada pelos sindicatos porque a anulação dos acordos foi, como vimos, um dos maiores golpes sofridos pelos portuários no início da ditadura. No próprio memorial, essa anulação é tratada como responsável pela “diminuição sensível do ganho dos trabalhadores”.
 
Então por que os dirigentes sindicais abriram mão de uma posição mais firme em relação à anulação dos acordos? Uma hipótese seria a de que a tática adotada no memorial visava dar os anéis para não perder os dedos. O volume de agressões direcionadas à categoria portuária era tão extenso e incessante que mal havia tempo para se recuperar de um golpe, pois outro ataque surgia imediatamente em sequência. A Lei 4.860/1965, ao dispor sobre o regime de trabalho nos portos, reduziu ainda mais a remuneração e outros direitos dos portuários, à revelia das convenções coletivas destacadas anteriormente.
 
Outra possibilidade seria que tal postura fosse mais uma demonstração de alinhamento ao governo, aceitando a anulação dos acordos como “uma parcela de contribuição exigida pelo atual governo, para o seu plano patriótico de soerguimento do transporte marítimo, fluvial e lacustre, com o qual estamos integrados” (“A Tribuna”, 28/1/1966).
 
Os memoriais eram publicados em profusão e sem qualquer eficácia. Há registros de que pelo menos 18 tenham sido encaminhados ao Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, sem que nenhuma medida concreta tenha sido tomada a favor dos trabalhadores por parte do governo. Outros caminhos precisavam ser trilhados para que os direitos retirados fossem reconquistados e a Justiça do Trabalho se apresentava como uma das poucas possibilidades.
 
Dissídios coletivos x ações plúrimas: as Juntas de Santos como alternativa
 
Como vimos, na assembleia dos portuários que debateu a operação tartaruga, o sindicato havia proposto instaurar dissídio coletivo como forma de estancar a mobilização que fugia ao controle das autoridades e do próprio sindicato. Inicialmente, a proposta foi rejeitada, mas com a escalada autoritária do governo por meio do IPM e do Decreto-Lei 3/1966, a categoria autorizou o sindicato a acionar a Justiça do Trabalho por meio do Dissídio coletivo n° 83/1966.


Dissídio coletivo n° 83/66. Fonte: acervo TRT-2.
 
Na ação, o sindicato questionou a anulação dos acordos de 1962 e 1963 e o novo regime de trabalho nos portos, alegando que estavam sendo subtraídos direitos adquiridos, oriundos de acordos e convenções coletivas firmados há mais de trinta anos entre as partes. A jornada de oito horas e o pagamento do horário noturno como hora extraordinária são destacados como exemplos de conquistas garantidas há muitos anos e reafirmados em acordos mais recentes, como o de 1960.
 
O sindicato mobilizou o princípio da inalterabilidade contratual lesiva e utilizou um precedente em que o Tribunal havia mantido os direitos previstos em acordo coletivo. Firmado entre os empregados de escritórios de navegação e diversas agências marítimas, suas cláusulas não foram renovadas pelas empresas, que alegaram ter sido o acordo assinado “sob a égide do império da força e de verdadeira ditadura sindical” (Dissídio coletivo n° 71/65).
 
Logo na instrução realizada na 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Santos, quando o juiz Walter Cotrofe atuava como juiz substituto, a alegação das empresas foi considerada inconsistente e descabida. Houve o mesmo entendimento no julgamento do dissídio, quando o Tribunal reconheceu que:
 
“As vantagens alcançadas pela categoria profissional representada pela suscitante por meio de acordos coletivos anteriores prevalecem, por não haver razão para retirá-las. A revolução não se fez para subtrair dos empregados os benefícios por eles alcançados. Apenas, procurou alijar do poder corruptos e subversivos. Caso as suscitadas achassem exorbitantes as exigências do sindicato suscitante, devia mesmo no governo passado recorrer à Justiça do Trabalho, como agora fazem, e não se submeterem às pretensões absurdas para agora anulá-las sem prova de prejuízos. Assim ficam mantidas as vantagens anteriormente obtidas pela categoria suscitante”.

Dissídio coletivo n° 71/65


Acórdão n° 2.527/1965, do dissídio coletivo n° 71/1965, utilizado pelo Sindicato dos Portuários como precedente da manutenção de direitos previstos em acordo coletivo. Fonte: acervo TRT-2.
 
Além da interpretação, no mínimo, controversa a respeito da finalidade do golpe de 1964, esse trecho do acórdão expressa uma decisão que ainda estava livre das leis e decretos que logo iriam limitar o poder normativo da Justiça do Trabalho e anular a validade dos acordos coletivos.
 
Por outro lado, toda essa legislação já se encontrava vigente quando o TRT-2 julgou o dissídio coletivo n° 83/66, envolvendo o Sindicato dos Portuários e a Companhia Docas de Santos. Nesse caso, apenas os juízes Carlos Bandeira Lins e Antônio Pereira Magaldi votaram pelo restabelecimento das normas anteriores.
 
O voto do relator se apoiou principalmente nos dispositivos do Decreto-Lei 5/1966, que considerou vencidos todos os acordos firmados há mais de dois anos, incluindo o de 1960 em que constava a jornada de oito horas e o pagamento de horas extras para o trabalho noturno.
 
O mesmo decreto foi utilizado para embasar a decisão do Tribunal no dissídio n° 84/1966, no qual o Sindicato dos Operários Portuários questionava a CDS por ter alterado a forma de cálculo da gratificação natalina nos termos acordados em 1962. Já o dissídio n° 71/1966, que vimos antes no âmbito da discussão sobre a política salarial, também foi considerado improcedente em seu aspecto jurídico, dessa vez com base no Decreto-Lei 56.420/1965, que anulou os acordos de 1962 e 1963.
 
Em suma, os dissídios coletivos analisados apresentam uma tendência de decisões desfavoráveis para os portuários no TRT, principalmente em relação aos pedidos de restabelecimento de direitos que constavam dos acordos anulados pelos decretos do governo. Essa mudança provavelmente ocorreu entre a instauração do dissídio 71/1965, que reconheceu a manutenção de direitos previamente acordados, e dos dissídios impetrados contra a CDS em 1966. Como vimos antes, o TRT nessa altura não questionaria mais a constitucionalidade das leis e decretos do governo, seguindo o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho.
 
Apesar dos sucessivos fracassos nos dissídios coletivos, os trabalhadores não desistiram da utilização da Justiça do Trabalho como alternativa na luta por direitos. Começamos a identificar, a partir de 1967, diversos julgamentos favoráveis aos trabalhadores nas Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos. Os sindicatos passaram a lançar mão das ações plúrimas, nas quais o processo reúne reclamações individuais de diversos trabalhadores sobre a mesma matéria.
 
Em uma das primeiras ações nesse sentido, a 1ª Junta declarou procedente o processo movido por 191 portuários contra a CDS. Os trabalhadores reclamavam da suspensão da gratificação de férias paga pela empresa desde 1961. A companhia se viu desobrigada do compromisso com o advento da legislação que anulou os acordos coletivos. Segundo a decisão unânime em primeira instância “o acordo faz lei entre as partes”.


Jornal “A Tribuna”, de 24 de novembro de 1967, informa vitória dos portuários por unanimidade na 1ª Junta de Santos. Fonte; acervo “A Tribuna”.
 
Já a 2ª Junta julgou procedente a reclamação dos estivadores quanto ao recebimento do 13° salário. Uma resolução do governo, de 1965, havia negado o abono de Natal a todos os trabalhadores avulsos. Somente em Santos existiam cerca de 6.000 pessoas nessa categoria, entre classificadores, consertadores, vigias, conferente e estivadores. A decisão em primeira instância, portanto, abriu um precedente importante para uma quantidade significativa de portuários.


Estivadores conquistam a volta do 13° salário na 2ª Junta de Santos. Jornal “A Tribuna”, de janeiro de 1968. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Cada vitória alcançada estimulava o ingresso de mais trabalhadores na Justiça do Trabalho. Em ação movida por 230 portuários, a 1ª Junta devolveu alguns dos direitos adquiridos que foram retirados pela CDS com a vigência da Lei 4.860/1965, como o pagamento do 13° salário sobre o bruto da remuneração do mês de dezembro e a gratificação de férias. 
 
Segundo a sentença proferida pelo juiz João Crisóstomo Martins Ferreira: “A Lei 4.860/1965, de caráter geral, não pode extinguir direitos adquiridos, pois esse alargamento da interpretação que a ela se dá constitui procedimento inconstitucional”. Como o pagamento desses benefícios era feito desde o início da década de 1960, o juiz concluiu que “a constância transforma essas obrigações em salário, conforme jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. A lei quando retroage não atinge o ato jurídico perfeito e acabado, que continua produzindo seus efeitos” (“A Tribuna”, 25/10/1968).


Portuários reconquistam alguns dos direitos suprimidos no pós-golpe. Jornal “A Tribuna”, de 25 de outubro de 1968. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Ainda em 1968, novos direitos foram reconquistados. A 1ª Junta de Santos atendeu a reclamação de 658 portuários da Divisão Mecânica da CDS relativa aos seguintes itens:  restabelecimento da semana inglesa, com o respectivo pagamento retroativo das 4 horas trabalhadas aos sábados (desde 1959 esses portuários gozavam do benefício);  restabelecimento de todas as condições de trabalho que vigoraram de 1961 até 1966; restabelecimento do salário-família, na forma anterior, bem como o do pagamento do 13º salário tomando-se por base o ganho bruto do mês de dezembro e restabelecimento do pagamento da gratificação de férias.
 
A sentença teve como fundamento o princípio da inalterabilidade contratual lesiva, prevista no artigo 468 CLT: “Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia” (“A Tribuna”, 15/11/1968).


Mais direitos são restabelecidos pela Justiça do Trabalho de Santos. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Com base no mesmo princípio, o próprio regime de trabalho nos portos, que havia sido a causa da deflagração da operação tartaruga, também foi questionado pelos juízes trabalhistas de Santos. Em ação movida por 140 empregados da CDS, a 1ª Junta de Conciliação e Julgamento restabeleceu a jornada diurna e o pagamento do horário noturno como hora extra.


Portuários também conseguem uma vitória na JT de Santos contra a jornada extenuante de trabalho imposta pela Lei 4.860/65. Jornal “A Tribuna”, de 24 de janeiro de 1969. Fonte: acervo “A Tribuna”.
 
Tendo em vista que os dissídios coletivos não prosperaram, o movimento dos sindicatos em direção às ações plúrimas parece ter sido uma estratégia eficaz. As vitórias frequentes na primeira instância possivelmente fortaleceram a luta pela recuperação de parte dos direitos suprimidos durante os primeiros anos do regime militar.
 
Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça
 
O regime militar tentou reduzir a Justiça do Trabalho a um instrumento de controle social a serviço da política econômica do governo e dos interesses empresariais. No entanto, as vitórias alcançadas pelos trabalhadores e a complexidade dos posicionamentos dos magistrados no interior de cada instância da Justiça Trabalhista indicam que esse objetivo não foi plenamente alcançado.
 
Ao iniciar sua análise sobre a limitação ao poder normativo como uma das barreiras impostas pela ditadura à Justiça do Trabalho, a historiadora Larissa Corrêa nos fornece uma chave de interpretação para compreender as possibilidades de atuação dos juízes do trabalho durante esse período: “(…) É importante considerar as experiências dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas para compreender de que forma o regime político instaurado em 1964 impactou na atuação da Justiça do Trabalho. Ainda que a historiografia tenha retratado a diminuição do poder de decisão dos juízes trabalhistas nos conflitos coletivos entre patrões e empregados ao longo da ditadura civil-militar, não é possível ignorar de antemão o papel desempenhado por essa instituição” (CORRÊA,2013, p. 263).
 
Os obstáculos impostos nesse contexto político autoritário não impediram que, em diversos momentos, as Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos representassem um ponto de apoio importante para os trabalhadores. Como discutido anteriormente, o governo militar e a Companhia Docas de Santos reservaram aos portuários condições extremamente adversas, incluindo o encarceramento, o desemprego e a superexploração.
 
Diante de tal cenário desfavorável, esses trabalhadores não se resignaram. Lutaram utilizando os recursos e estratégias ao seu alcance. Essa luta teve início logo no primeiro dia, com o movimento de resistência ao golpe. Sendo derrotados nessa batalha inicial, organizaram silenciosamente a operação tartaruga e outras lutas cotidianas, num período em que o caminho das greves se mostrava praticamente interditado. Mesmo abalados pela destituição dos representantes sindicais que elegeram, pressionaram os interventores impostos pelo regime a se movimentarem em defesa de seus direitos. E, sim, buscaram na Justiça do Trabalho outra via de luta, principalmente quando outros meios foram inviabilizados. 
 
Nas Juntas de Santos, os sindicalistas e ativistas presos, torturados e demitidos iniciaram uma batalha pela sua reintegração à CDS. As decisões dos juízes do trabalho, além de terem anulado muitas das demissões, contribuíram para a absolvição desses trabalhadores nas esferas militar e penal. Certamente não foi esse o resultado planejado pelos golpistas quando invadiram os sindicatos em busca de provas de subversão e corrupção. Seu objetivo era condenar e desmoralizar de forma categórica e permanente essas lideranças. Também não estava nos planos da empresa receber de volta esses funcionários, dos quais pretendia se ver livre de forma definitiva.
 
Os portuários recorreram também às Juntas de Santos em busca dos direitos suprimidos no pós-golpe. Em um ambiente marcado pelo terror da perseguição política, cada trabalhador precisou de coragem para incluir seu nome em uma das diversas ações plúrimas que foram ajuizadas. As primeiras sentenças favoráveis provavelmente encorajaram outros trabalhadores a seguirem o mesmo caminho, apesar do risco de figurarem nas listas encaminhadas pela empresa aos órgãos de repressão.
 
Vimos também que os juízes de Santos não se omitiram nos debates que envolveram os impactos do regime militar na Justiça do Trabalho, desde a crítica à precariedade dos recursos materiais e humanos para o funcionamento das Juntas até os protestos por aumento na remuneração, passando pelo questionamento da política salarial do governo. Tais posicionamentos ganharam as páginas dos jornais, envolvendo o apoio do movimento sindical, da advocacia trabalhista e de membros do Legislativo.
 
Por fim, a decisão da 1ª Junta de Santos no caso do desaparecimento, prisão e tortura do portuário Jackson de Oliveira Santos foi crucial em diversos aspectos. Primeiramente, foi essencial para restabelecer a dignidade desse trabalhador, ao refutar as acusações da empresa e determinar sua reintegração. Além disso, essa decisão possivelmente teve um papel determinante em sua absolvição na esfera penal. A fundamentação da sentença, que foi publicada na íntegra no jornal de maior circulação da cidade, também representou uma denúncia contundente da utilização de métodos de tortura. Ademais, revelou mais um indício da colaboração entre a Companhia Docas de Santos e os órgãos de repressão.
 
Em suma, se levarmos em consideração a experiência dos portuários nas Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos e o efeito que as decisões da primeira instância tiveram em suas vidas durante os primeiros anos da ditadura, é legítimo questionar a visão de uma Justiça do Trabalho impotente durante esse período. Não se trata de construir no lugar a imagem idealizada de uma Justiça redentora, que teria salvo os trabalhadores de toda sorte de arbitrariedades, mas de identificar a importância de sua atuação para aqueles que viram seus direitos mais fundamentais serem violados pelo regime.
 
Ao nos aproximarmos de certos aspectos da realidade experimentada pelas Juntas de Santos, buscamos compreendê-los levando em conta as contradições, avanços, limitações e potenciais da Justiça do Trabalho. Esta breve análise não visa abarcar toda a complexidade que envolveu sua atuação durante a ditadura.
 
No entanto, reconhecer essa complexidade é fundamental e implica também considerar o papel dos trabalhadores como agentes históricos, capazes de escolher suas estratégias e formas de resistência, incluindo o recurso à Justiça do Trabalho. A resistência dos portuários, aliada à atuação dos magistrados, especialmente nas Juntas de Conciliação e Julgamento de Santos, revelou a capacidade de luta e de defesa dos direitos laborais mesmo em um contexto autoritário.
 
A pesquisa sobre a história da Justiça do Trabalho nesse período pode contribuir para aprofundar determinados aspectos do conhecimento já acumulado sobre a ditadura civil-militar no Brasil. Uma das possibilidades seria contribuir para a superação de uma visão que acredita que a violência do regime ditatorial foi direcionada apenas aos adeptos da luta armada. Quando muito, tal leitura amplia a abrangência da repressão à militância partidária, sindical e estudantil. O caso de Jackson nos mostra que até mesmo os trabalhadores considerados “comuns”, sem vínculo político, sofreram as consequências perversas do autoritarismo.
 
Para o historiador Lucas Pedretti, outros grupos sociais se encontram invisibilizados em distintas camadas de esquecimento, sendo imprescindível contextualizar a violência ditatorial dentro de um espectro mais amplo de violências estatais que ocorrem antes e depois desse regime. Essas violências têm consistentemente como alvos principais os negros, os habitantes de favelas e áreas periféricas, os povos indígenas, as mulheres e os indivíduos LGBTQIA+. O estudo desses agentes históricos, dos processos trabalhistas e da atuação da Justiça do Trabalho durante a ditadura civil-militar pode ajudar a revelar algumas dessas camadas.
 
Olhar para esse processo histórico de forma crítica não significa remoer o passado, mas construir o porvir. Um futuro livre das arbitrariedades inerentes aos regimes autoritários, porém ainda arraigados em nossa sociedade e no aparato estatal. Significa também assegurar o direito à memória de todos aqueles que foram alvos da perseguição e da violência. Lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.


Memórias Trabalhistas é uma página criada pela Seção de Gestão de Memória do TRT-2, setor responsável pela pesquisa e divulgação da história do Regional. A página integra o Portal da Memória, espaço onde é possível encontrar artigos, histórias e curiosidades sobre o TRT-2, maior tribunal trabalhista do país.
 
Acesse também o Centro de Memória Virtual e conheça nosso acervo histórico, disponível para consulta e pesquisa.
 
Bibliografia:
 
BORTONE, Elaine de Almeida. As articulações da Companhia Docas de Santos no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e na ditadura empresarial-militar (1964-1967). Projeto História, São Paulo, v.77, pp. 112-134, Mai./Ago,. 2023. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/61424. Acesso em: 12 jan. 2024.
 
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Violações de direitos humanos dos trabalhadores. In: BRASIL.Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade: volume II, textos temáticos. Brasília, DF: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf. Acesso em: 16 jan. 2024.
 
CORRÊA, Larissa Rosa. A “rebelião dos índices”: política salarial e Justiça do Trabalho na ditadura civil-militar (1964-1968). In: GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira (org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
 
GOMES, Ângela de Castro. Retrato falado: A Justiça do Trabalho na visão de seus magistrados. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 37, jan./jun., pp. 55-79, 2006. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/reh/article/view/2257. Acesso em: 27 nov. 2023.
 
MARTINS, Conceição da P (coord.). Memória Sindical de Santos 1930-1964. Santos: Fundação Arquivo e Memória de Santos, 1997. Disponível em: http://www.fundasantos.org.br/e107_files/public/1568810736_memoria_sidical_completo.pdf. Acesso em: 13 dez. 2023.
 
NETO, Antônio Fernandes; SANTOS, Adriana Gomes. Cia Docas de Santos: Eternamente em berço esplêndido. São Paulo: Sundermann, 2020.
 
PEDRETTI, Lucas. Entre políticas de memória e camadas de esquecimento. In: ESTEVEZ, Alejandra (org.). Lembrar é agir: memória, verdade e direitos humanos. São Paulo: Letra e Voz, 2021.
 
SILVA, Claudiane Torres da. Justiça do Trabalho e Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985): atuação e memória. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1402.pdf. Acesso em: 24 jan. 2024.
 
SILVA, Fernando Teixeira da. A Carga e a culpa. São Paulo: Hucitec, 1995.
 

 


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