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Escândalos políticos provocam explosão de marchinhas satíricas

Fonte: O Globo
 
Concurso nacional contabiliza 120 músicas de carnaval criticando Dilma e Eduardo Cunha

 
Na noite da quinta-feira (7/1), o advogado paulistano Thiago de Souza, de 36 anos — que, apesar de viver e trabalhar em São Paulo, é um dos integrantes da ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira —, publicou na internet uma marchinha que tinha feito de brincadeira com amigos: “Ai meu Deus, me dei mal/ bateu na minha porta o japonês da federal/ Dormia o sono dos justos, raiava o dia, eram quase seis/ Escutei um barulhão, avistei um camburão/ O japonês então falou: vem pra cá!/ Você ganhou uma viagem ao Paraná...”
 
Uma gaiatice com o agente da Polícia Federal de Curitiba Newton Ishii, personagem que sempre aparece nas fotos públicas das prisões e apreensões da Operação Lava-Jato. Em poucas horas, a música já era um sucesso na internet.
 
Dois dias depois já tinha um recado da editora Irmãos Vitale, interessada em cuidar dos direitos de execução da marchinha.
 
— Fiquei impressionado, é a empresa que cuida da obra de Lamartine Babo e da maioria das marchinhas brasileiras — surpreendeu-se Thiago, que só para este ano já compôs 14 marchinhas de cunho político. — Eu só tinha feito uma marchinha na vida, faço mais sambas-enredo. Mas neste ano o cenário político parece piada pronta, com personagens, enredo, tudo. A marchinha sempre se prestou à sátira, e faz todo o sentido ela voltar neste ano como um veículo de manifestação de ideias e usar o humor como protesto. Fiz marchinhas com praticamente todos os personagens que apareceram no noticiário em 2015.
 
“Não enche o saco do Chico”
 
Numa delas, inventou um romance entre uma petralha e um coxinha; em outra, fez uma espécie de “carta-resposta” da presidente Dilma Rousseff ao vice, Michel Temer; e em outra, intitulada “Bar do Cunha”, Thiago inventa um país em lei seca generalizada, onde só o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, teria um bar aberto.
 
— Onde é que o povo vai tomar? No Cunha! — canta Thiago, já puxando o refrão.
 
Na cola do “Japonês da Federal”, também virou um hit das redes a marchinha “Não enche o saco do Chico”, do mineiro Marcos Frederico Gomes: “Não pode, não pode/ Encher o saco do Chico Buarque/ Não vai passar! Não vai! / Intolerante, nem por um segundo/ Cálice, filhinho de papai/ Vai trabalhar, vagabundo!”. A letra é uma clara alusão à discussão política entre Chico Buarque e jovens que o abordaram de maneira agressiva, criticando-o por apoiar o governo, briga ocorrida há algumas semanas à saída de um restaurante do Leblon — episódio que se tornou mais uma alegoria da polarização política que impera no país.
 

 
— O ano de 2015 foi tão conturbado que está fácil fazer piada. Naturalmente neste ano vão aparecer mais músicas com conteúdo político, porque os ânimos estão muito acirrados — comenta o compositor Daniel Pereira, que tem mais de 30 sambas vitoriosos em disputas de carnaval, muitos de sátira política.
 
Um dos sambas que Daniel já compôs neste ano (e que pretende inscrever na disputa do bloco Imprensa Que Eu Gamo) diz: “O meu bloco tá na rua, tô ficando sem vergonha: menos Cunha, mais conha/ Bolsonaro e Malafaia gostam de morder a fronha: menos Cunha, mais conha/ Dilma Rousseff, chega mais, não se vá agora/ Mas essa crise tá mais feia que a senhora”.
 
— Falo mal de todo mundo. Da Dilma, do Aécio, do Paes, do Freixo. Carnaval é galhofa. Mas não pode ter tom de revolta, nem repetir as piadas da internet. Piada em bloco tem que ter elemento- surpresa — diz Daniel.
 
Jorge Sapia, um dos compositores mais conhecidos do Rio, gosta de repetir uma máxima: “Os políticos são nossos melhores parceiros”.
 
— É tanto assunto, palavra nova, que fica fácil compor... Hoje à noite mesmo vou compor o samba para o Bloco de Segunda.
 
“PUM DA DILMA”
 
Segundo o “data-marchinhas” do Concurso de Marchinhas da Fundição Progresso, disputa nacional que acontece há 11 anos na instituição carioca (e cujas inscrições se encerram hoje), das 611 músicas inscritas para a contenda neste ano, até agora pelo menos 120 fazem críticas a Dilma e a Eduardo Cunha (um dos mais lembrados) e citam a Operação Lava-Jato.
 
A lista de inscritos é vasta: tem música sobre o “pirata do óleo e do gás/ de olho caído/ e que rouba demais” (uma referência ao ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, condenado na Lava-Jato); tem sobre o “candidato chorão/ que perdeu a eleição/ e chama o outro de ladrão” (o ex-candidato à Presidência e senador Aécio Neves); e outras zombam a “saudação à mandioca” feita pela presidente Dilma durante o lançamento dos Jogos Indígenas, em junho (uma delas, chamada “Pum da Dilma”, diz: “Mandioca, macaxeira e aipim/ o seu governo já chegou ao fim”, a outra, “Mandioca Sapiens”, é menos escatológica: “Não inventa, presidenta/ Vira essa mandioca pra lá/ Do jeito que tá ninguém aguenta/ Enfia essa mandioca em outro lugar”).
 
Para quem acha que as marchinhas que funcionam como crônica, protesto ou pura galhofa política acabam datadas, basta lembrar de clássicos como “O cordão dos puxa-sacos”, de 1946, que podia muito bem ter sido composta na semana passada: “Lá vem o cordão dos puxa-sacos/ dando vivas aos seus maiorais/ quem está na frente é passado para trás/ e o cordão dos puxa-sacos, cada vez aumenta mais/ Vossa Excelência, Vossa Eminência, quanta reverência nos cordões eleitorais/ Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão/ A turma toda evolui de opinião...”.
 
— Marchinha boa é atemporal — garante o maior especialista em marchinhas do país, o pianista, produtor musical e compositor João Roberto Kelly, autor de clássicos como “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”, que jamais saíram de moda. — Todo ano o meu carnaval é baseado em algum fato, e as minhas músicas são retratos do que acontece. Até agora, deu certo. Neste ano, fiz uma marchinha com o Pedro Ernesto, presidente do Bola Preta, sobre essa sensação de que o dinheiro do povo sumiu. Roubaram tanto que sumiu.
 
“CADÊ MEU DINHEIRO?”
 
A marchinha chama-se “Cadê meu dinheiro?”, já foi gravada e está sendo tocada pela banda do Cordão do Bola Preta, em apresentações pela cidade: “Ô, ô, ô/ cadê o meu dinheiro?/ o meu dinheiro fugiu/ foi pra Marte, foi pra Lua, ou foi pra longe do Brasil?”.
 
— Este ano certamente será mais farto: como a marchinha é por natureza um gênero musical crítico, o pessoal vai se esbaldar — confirma Kelly.
 
O jornalista e compositor João Pimentel, outro profícuo compositor de marchinhas, lembra de outra que não fica velha de jeito nenhum:
 
— Tem marchinha mais atual do que “Vagalume”, de 1954? “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz! Abri o chuveiro, não cai um pingo, de segunda até domingo!” — cantarola Janjão, como é mais conhecido nas rodas de samba cariocas.
 
Ele conta uma história curiosa sobre a permanência das marchinhas:
 
— A política e o país são fontes eternas de inspiração. Dá até para reaproveitar marchinhas, pois nada muda. Há alguns anos fizemos uma marchinha sobre a dengue. Chamava-se “É dengue que a nega tem”. Era assim: “O Ministério da Saúde se diverte/ Não dá pra controlar a epidemia/ No carnaval o contágio é geral/ O surto é de alegria”. A marchinha não entrou entre as dez finalistas, mas, pouco tempo depois, a Secretaria de Saúde entrou em contato, pedindo para usar a marchinha sobre a dengue. Mudamos a letra para “A Secretaria de Saúde adverte/ já dá pra controlar a epidemia...”. Virou campanha durante o carnaval. O que eles não se tocaram é que a primeira parte era um grande deboche: “Na minha casa, o mosquito não se cria/ Garrafa só tem vazia/ Se por acaso esse bicho aparecer/ Eu mesmo faço um fumacê”... E tocou em todos os palcos e blocos do Rio.
 

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