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09/02/2018 - 03h39

Um retrato dos privilegiados no Brasil


Fonte: Carta Capital / Fernando Nogueira da Costa*
 
Uma análise das declarações de Imposto de Renda recentemente publicadas pela Receita Federal permite reflexões sobre o enriquecimento no País

 
“Gente de bem” bate panela vazia? É “bem-nascida”, isto é, herdeira? É a “sorte-do-berço” determinante de seu bem-estar? É self-made man, alguém que se fez por si próprio, com seu esforço, pelas boas qualidades intrínsecas ao seu DNA ou adquiridas em seu ambiente familiar educacional?
 
É o instinto humano básico da competição ou o da proteção que a caracteriza? São boas escolas, bons professores, boa rede de relacionamento social, ou bons privilégios sociais, por exemplo, isenção fiscal em seus rendimentos, os determinantes básicos do $uce$$o?
 
Os grandes números do DIRPF 2017 Ano Calendário 2016, recentemente publicados pela Receita Federal, permitem reflexões sobre essas questões relativas ao enriquecimento pessoal. A tabela abaixo apresenta um ranking de ocupações principais dos declarantes em que estimei os rendimentos totais (tributáveis, exclusivos e isentos) per capita, deduzindo os mensais, além do patrimônio líquido per capita, descontando as dívidas dos bens e direitos.
 
 
Nessa média dá para verificar a extraordinária mobilidade social de certa ocupação. Devido em parte ao pequeno número, que dilui menos a concentração da riqueza, os 2.625 diplomatas, que se situavam em quinto lugar no ranking de bens e direitos no ano anterior (DIRPF 2016-AC2015), no ano seguinte, com dois declarantes a menos (2.623), tiveram aumento de cerca de 40% no patrimônio líquido per capita.
 
Isso os levou a superar até o Titular de Cartório que tinha a maior riqueza no ano anterior. Resta para consolo deste “infeliz” que ele permanece, disparado, como o mais rico em renda, quase o dobro do segundo e do terceiro colocado, respectivamente, integramte do Ministério Público e do Poder Judiciário e Tribunal de Contas (argh). Os diplomatas ocuparam a quarta posição no ranking de renda, talvez por receberem em dólares. A cotação do dólar chegou a atingir  4,16 reais e ficou acima de 3,50 até o dia do golpe em 12 de maio de 2016.
 
Depois dessas, dá para ver no ranking que outras boas ocupações, em Terrae Brasilis, estão em castas poderosas. São as pertencentes a Poder Judiciário, Poder Fiscalizador, Poder Econômico, Poder Midiático ou Poder das “Celebridades” (Atletas ou Artistas). Senão, resta como boa ocupação cuidar dos poderosos: médicos, pilotos... Aliás, conclui-se que Poder é ter o poder de determinar a própria renda.
 
Os atletas são classificados como uma subcasta dos guerreiros por compartilhar os mesmos valores de fama, glória, coragem e honra. Mas se diferenciam muito nos rankings tanto de renda quanto de riqueza. E pela variação anual de rendimentos são os que tiveram maior poder de barganha em 2016.
 
 
Quanto ao ranking de riqueza das castas básicas, o posicionamento de cada qual não muda de 2015 para 2016. A dos mercadores passa a ser seis vezes mais rica do que a dos trabalhadores em patrimônio líquido e quase quatro vezes em rendimentos. As castas dos oligarcas governantes e sábios tecnocratas permanecem recebendo maiores rendimentos.
 
Estas e as dos mercadores ganham quase o dobro ou mais do que as demais castas. Em patrimônio líquido, a dos mercadores supera todas, é quase o dobro em relação ao das castas dos sábios, sete vezes maior em relação a guerreiros e trabalhadores. Só os governantes têm riqueza média per capita próxima da deles.
 
 
A medição da renda e riqueza per capita das ocupações principais dos declarantes do imposto de renda possibilita entender o resultado do seu poder de barganha na economia mercantil de um país atrasado em direitos e deveres da cidadania. No anexo estatístico (link aqui), cada ocupação principal dos 28 milhões declarantes está enquadrada em determinada casta.
 
Aqui cabe avaliar ainda se é possível deduzir do posicionamento nesses rankings seus posicionamentos ideológicos. É válido esse ?
 
Valores morais são os conceitos, juízos e pensamentos que são considerados “certos” ou “errados” por determinada pessoa na sociedade. Normalmente, os valores morais começam a ser transmitidos para as pessoas nos seus primeiros anos de vida, através do convívio familiar.
 
Com o passar do tempo, este indivíduo vai adquirindo outros valores a partir de observações e experiências obtidas na vida social, seja no ambiente escolar, seja no ambiente profissional.
 
Esses valores morais são variáveis, ou seja, podem divergir entre sociedades ou grupos sociais diferentes. Para um grupo de indivíduos uma ação pode ser considerada correta, enquanto que para outros agrupamentos esta mesma atitude é repudiada e tida como errada ou imoral.
 
A casta dos mercadores, dividida entre distintos portes de empresários, compartilha entre si os valores de competitividade e empreendedorismo, mas se divide entre os firmes – defensores da disciplina, principalmente fiscal, de regras comportamentais e autoridade --, e os brandos -- adeptos do internacionalismo, da tolerância e do liberalismo cultural.
 
Em geral, estes são grandes empregadores ou profissionais liberais autônomos. Aqueles são pequenos empresários que vivem sob pressão da concorrência.
 
No passado, diagnosticava-se que a pequena burguesia tinha pavor de se tornar proletária, isto é, aquela gente que só tem prole ou filhos. No presente, seu medo seria os proletários terem uma mobilidade social com base em políticas públicas e ganharem um status social similar.
 
Daí a hipótese de que o antipetismo ou o discurso de ódio intolerante teriam como maior motivação o conservador temer mudança de costumes e perda de “exclusividades” com os direitos e deveres da cidadania sendo para todos.
 
Partindo do conceito da ética pública, os valores éticos são princípios que não se limitam apenas às normas, costumes e tradições culturais de uma sociedade (valores morais). Eles também englobam as características compreendidas como essenciais para o melhor modo de viver ou agir em sociedade. Ser integrante do aparelho do Estado, por exemplo, exige a renúncia às vantagens privadas em favor do bem comum e da coisa pública – essa abstenção pessoal é uma abnegação. Exige autocontrole.
 
A República exige essa disposição ao sacrifício. Nela há supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular de ter. O servidor público adota a ideia de dever.
 
No entanto, os oligarcas herdeiros de dinastias políticas regionais, muitos proprietários rurais, quando assumem cargos de liderança política no Brasil costumam se esquecer da ética pública e adotam o paternalismo ou então a exigência autoritária de respeito pela “diferença de berço”.
 
Já os sábios-tecnocratas que lidam com serviço público são administradores e técnicos que valorizam a educação superior e a especialização. Cumprem ordens do governo da ocasião e evitam adotar posicionamento partidário por causa do pêndulo do Poder. Os governantes passam, eles ficam... E recebem boa renda.
 
A boa formação em Ensino Superior ensina que, na vida social, os valores morais são essenciais, pois ditam o comportamento, a forma de interação entre os membros daquele grupo e a ordem do cotidiano. Daí os valores sociais deveriam estar focados nos direitos e deveres da cidadania que civilizam a vida em sociedade. Porém, a casta dos universitários preza, acima de tudo, o reconhecimento de mérito na vida profissional. Seu ranking demonstra mais a demanda social por prestação de certo serviço por parte de cada profissional face ao número total deles especializados em nível superior.
 
Os valores morais são baseados na cultura, na tradição, no cotidiano e na educação de determinado povo. No entanto, existem os valores presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A consciência de que o respeito ao próximo deve ser um imperativo no convívio social evita o conflito entre diferentes valores morais com discriminação e preconceito, por exemplo, em relação ao homossexualismo. A religião ajudava a moldar os valores morais. A fé, o matrimônio e a união familiar são os valores enfatizados pela igreja hoje em vez do apoio comunitário e solidário da igreja primitiva.
 
Um problema de certos cristãos é achar que todos os valores estão baseados em uma das diversas leituras possíveis da bíblia. Daí partem para pregar a todos os cidadãos de um Estado laico o que sua doutrina religiosa entende como sendo “certo”, “errado”, “bem” ou “mal”. Os maniqueístas sentem dificuldade em lidar com o relativismo.
 
Classifiquei então ocupações com valores morais heterogêneos na milenar casta dos sábios sacerdotes pregadores ou criativos. Entre eles estão profissionais que lidam com pessoas e comunicações, desde os que defendem seu saber especializado com base na educação formal até os que pregam autonomia, autoexpressão e liberalismo cultural. Junto com professores, profissionais da mídia, escritores e artistas, estão 49 mil sacerdotes ou integrantes de ordens ou seitas religiosas. Todos não são “pregadores”?
 
Como disse antes, as ocupações nas Forças Armadas, Polícias Militares e Civis, etc., têm os mesmos valores de esportistas: fama, glória, coragem, honra. Os guerreiros atiçam guerras intermináveis por honra ou vingança por eventual perda de status social ou ameaça a seus valores conservadores. Eles se definem, essencialmente, como nacionalistas ou guardiões da Pátria e da Ordem Pública. Ganham maior renda per capita, mas têm patrimônio líquido quase no mesmo valor que o dos trabalhadores.
 
Por fim, essa estratificação social adotada para a análise dos Grandes Números das DIRPF revelou que as ocupações da casta dos trabalhadores recebem em média per capita mensal cerca de 5,5 mil reais e têm um patrimônio em torno de 90 mil reais. Os não declarantes são discriminados como “párias” por não terem recebido, em 2016, rendimentos tributáveis superiores a  28.559,70 reais – equivalente a 2.380,00 mensais.
 
Os trabalhadores especializados são artesãos que ainda detém habilidade ou criatividade. Já os trabalhadores em produção em série de bens e serviços costumam ter ceticismo quanto ao livre-mercado e são adeptos da igualdade econômica. Ganham menos e têm bem menos bens e direitos que as demais castas. Caso houvesse igualitarismo total de renda e riqueza entre os declarantes de imposto de renda, todos seriam classificados em uma classe média, ganhando uma renda mensal de R$ 7,5 mil e tendo bens e direitos em torno de 270 mil reais.
 
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-Unicamp