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Austeridade, o vento que seca o bolso do brasileiro

Fonte: O Globo

Economizar vira moda, com ajuste em contas do governo, aumento de impostos e mais inflação
 
O vento da austeridade sopra de vez por aqui. A palavra mais falada nesse verão juntamente com a sensação térmica tem origem em Auster, nome de um vento do Mediterrâneo, vindo do sul, que tudo secava.
 
— Foi este vento que deu nome à austeridade no sentido em que os economistas usam a palavra - explica o professor e escritor Deonísio da Silva.
 
Palavra mais usada pelo novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, a austeridade chegou tarde nas contas do governo, na opinião do consultor de Marketing e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Luiz Macedo. O corte de gastos já atingiu o bolso e a rotina dos brasileiros:
 
— Virou moda economizar. Na minha opinião, o governo chegou atrasado nessa onda. Eu sinto claramente que a sociedade já aponta nessa direção em função dos absurdos que a gente encontra por aí. Olha a quantidade de pessoas que você vê na praia levando isopor, que antigamente o carioca dizia que era coisa de farofeiro. Não é por modismo não, é por necessidade mesmo. A vida não está mole para a classe média. No calor, je suis farofeiro.
 
Macedo tem razão. O ânimo do consumidor brasileiro anda murcho. As sondagens da FGV mostram isso. O indicador de intenção de compra de bens duráveis caiu 5,7% em dezembro, o menor patamar desde fevereiro de 2009, época em que o país entrou em recessão como consequência da crise financeira global.
 
— No caso do emprego, em dezembro, 8% achavam fácil conseguir trabalho contra 59,7% que consideravam difícil. No melhor momento dessa avaliação, em dezembro de 2011, 20,7% consideravam fácil e 38,4%, difícil. Estamos no oitavo mês consecutivo aumentando a parcela de pessimistas. Isso não ocorria desde a crise de 2008 - afirmou Aloisio Campelo, superintendente adjunto de ciclos econômicos e responsável pelas sondagens feitas pela FGV.
 
O ano de 2015, em qualquer projeção que se use, até mesmo as astrológicas, vai ser difícil. Estagnação econômica, inflação alta (deve ser a maior desde 2004), desemprego subindo e rendimento do trabalhador corroído pelo baixo crescimento e pela alta de preços compõem o quadro.
 
Apesar de atrasado, como afirma Macedo, o ajuste nas contas públicas começou com força por meio do aumento de impostos - essa estratégia de acertar as contas públicas já fez a carga tributária subir de 25% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país) no início dos anos 1990 para 36% em 2013 - do encarecimento do crédito que teve a alíquota do tributo dobrada e do corte em benefícios sociais para desempregados e viúvas. Soma-se a isso a ameaça de racionamento de água e luz. Situação que pode ser pior que a de 2001, quando houve racionamento de energia, inflação de 7,67% e crescimento econômico de 1,31%, bem maior que os 0,38% esperados para este ano pelo mercado. Alguns, diante do tamanho da austeridade imposta, já estão prevendo inflação de 7,2% e recessão em 2015.
 
Deonísio da Silva, diante do ajuste inevitável, vê clareza nos pronunciamentos do novo ministro. O discurso hermético de Levy não esconde a realidade, na opinião do professor:
 
— É um anunciador de desgraça, e faz isso claramente. Esse mérito ele tem.
 
Ele se ressente da omissão da presidente Dilma Rousseff nesse momento de cortes.
 
— Vemos a omissão de voz da presidente da República. Quem está falando é Joaquim Levy, que se assemelha a um primeiro ministro. Vivemos num regime presidencialista, com grande poder nas mãos da Presidência da República. E a presidente Dilma, na hora decisiva, não está aparecendo. Uma mudança dessa gravidade, ninguém menos que a presidente da República deveria vir a público. A personagem principal é ela. Ministro é coadjuvante. O nome já diz, é aquele que serve, que ajuda.
 
E é verdade, há mais de um mês a presidente não dá entrevistas. Exatamente o período em que as medidas impopulares entraram no ar. A última foi a redução no reajuste da tabela do Imposto de Renda. Ela vetou a correção de 6,5%, a taxa de inflação do ano passado, e deve limitar o ajuste a 4,5%, aumentando a base de contribuintes.
 
Mesmo impopulares e com potencial para levar a economia à recessão, há um quase consenso entre especialistas quanto à necessidade de cortar gastos para evitar uma crise fiscal lá na frente. Mas há críticas sobre a falta de diálogo com a sociedade. Faltou conversa, faltou negociação, faltou discutir com o povo brasileiro sobre os cortes nos benefícios sociais, feitos no apagar das luzes do primeiro mandato da presidente Dilma, diz o economista e sociólogo da UnB e do Ipea Marcelo Medeiros. Mexeu-se no seguro-desemprego no momento em que a economia está estagnada e os efeitos começam a chegar ao mercado de trabalho. O crescimento das vagas formais no Brasil teve o pior desempenho em 12 anos, conforme divulgou o Ministério do Trabalho anteontem.
 
— O corte de aposentadorias das mulheres, especialmente viúvas, não foi sequer debatido. Foi feito no apagar das luzes. Uma medida impopular, saindo de uma campanha. Esse sinal foi muito ruim do ponto vista social, uma surpresa negativa.
 
Há que ter moderação no ajuste, para não matar o PIB brasileiro, que ficou estagnado no ano passado e caminha para repetir o desempenho em 2015 ou até ficar pior, com recessão. Como lembram especialistas, rearrumar as finanças do Estado não é o mesmo que acertar as contas da família. Cortar despesas em casa não mexe na renda familiar. Nas contas do Estado, sim. Diminui a arrecadação de impostos - a maioria dos tributos no Brasil incide sobre consumo e produção afetados diretamente pelo ajuste - e a parcela da dívida que se quer diminuir cresce se a economia anda para trás. O que o governo quer é estabilizar a dívida pública em relação ao PIB (que passou de 56,7% em dezembro de 2013 para 63% em novembro do ano passado). Assim, pode evitar que o grau de investimento conquistado em 2008 pelo mesmo governo petista seja perdido. A solvência da dívida pública é o principal indicador para se obter grau de investimento pelas agências de risco. A perda desse status econômico gera fuga de capital e corre-se o risco de o dólar disparar.
 
— O governo precisa de um superávit primário (economia para pagar juros da dívida) de 1,2% do PIB, precisa preservar os gastos sociais e em infraestrutura. A única forma de fechar essa equação é um ajuste fiscal gradual e uma política de juros moderada. Quanto menor o nível de atividade, mais difícil fica estabilizar a dívida pública — afirma o economista Paulo Nogueira Batista Jr., diretor-executivo pelo Brasil e mais dez países no Fundo Monetário Internacional.
 
Conhecedor das palavras, Deonísio da Silva diz que a imagem da austeridade só vai ganhar mais força na sociedade se vier como o exemplo de cima. O reajuste dado aos ministros do Supremo Tribunal Federal, aos parlamentares e ao Ministério Público vão na contramão dessa máxima:
 
— Estão falando em fazer ajuste, mas tem que dar exemplo da redução da gastos. Ampliam impostos para os gastos ficarem o mesmo ou até maiores. A palavra comove, mas o que arrasta mesmo é o exemplo.
 
Luiz Carlos Prado, professor da UFRJ, reclama da forma como as decisões vêm sendo tomadas, endossando a opinião de Medeiros:
 
— Temos que aumentar receita e reduzir despesa. Mas vamos cortar em quem gritar menos? Quem gritar pouco vai ser mais prejudicado?
 
O economista ficou especialmente indignado com o corte nas verbas do Ministério da Educação, o mais atingido pela redução imposta aos ministérios de R$ 1,9 bilhão mensal.
 
— Sob a desculpa que todos concordam, os cortes foram em cima dos mais fracos e menos articulados, como sempre acontece. Ao contrário do discurso de campanha.
 
A professora da UFF, a economista Hildete Pereira de Melo, é uma voz dissonante nessa quase unanimidade de que é necessário cortar gastos:
 
— É um falso dilema. Vai só aumentar a recessão. Todos os escritos keynesianos mostram que se cortar a carne vai ter que enxugar sangue. Há uma preocupação com a proteção da moeda diante do ciclo de financeirização da riqueza, que leva à política de austeridade. Vai trazer o Brasil de novo para a restrição das classes sociais. É o sinal para que as classes subalternas fiquem no seu lugar.
 
O mercado de trabalho tem sido o impulso para a ascensão das classes D e E para a classe C, classificado como classe média, na última década. Como se espera como consequência do ajuste fiscal uma piora do mercado de trabalho, essa ascensão pode não se dar este ano, como prevê a professora da UFF. Campelo, da FGV, lembra que a inflação mais alta vai corroer a renda das famílias e dificultar ganhos salariais em 2015. E deve empurrar os jovens que foram preservados para aumentar a escolaridade a procurar uma ocupação. A restrição do acesso ao seguro-desemprego também deve aumentar a oferta de mão de obra. Isso faz a taxa de desemprego subir. Ainda é cedo para dizer se isso realmente vai acontecer, pois o mercado de trabalho brasileiro tem se mantido firme mesmo com o pouco crescimento econômico dos últimos anos, mas a ameaça é bem clara e está exposta nas projeções que bancos e consultorias fazem para este ano.
 
Medeiros teme que o ajuste sem discussão com a sociedade vá descambar para a Justiça ou para as ruas, como aconteceu em 2013:
 
— A decisão foi no fim do ano, deliberadamente tomada para que ocorresse fora de um período que favorecesse o debate, no último dia do ano. O problema potencial disso é desencadear protestos ou ações na Justiça.
 
A Europa, onde o discurso da austeridade fiscal foi dominante desde que a crise financeira de 2008 e 2009 destruiu as finanças públicas, agora é expansionista depois da decisão do Banco Central Europeu de injetar EUR 60 bilhões mensalmente na economia. O corte de gastos público exigido na época da crise foi tamanho que as taxas de desemprego na região estão em dois dígitos. Em alguns países como a Espanha chega a mais de 20%. Há esse risco no Brasil, alerta Paulo Nogueira, mesmo com a situação fiscal daqui significativamente melhor que a encontrada em alguns países europeus:
 
— A Grécia já mostrava uma situação de grande desequilíbrio antes de a crise estourar. Com o ponto de partida tão ruim, a correção é mais difícil. A comparação com Europa não é tão simples. Mas a experiência europeia sugere uma coisa, os multiplicadores da política fiscal podem ser maiores que os esperados. Tem que tomar cuidado. Pode-se aplicar um ajuste x e ter um impacto de dois x ou 1,5 x. Tem que monitorar, para adaptar a política fiscal e monetária mais rapidamente - diz o economista que fala em caráter pessoal.
 
Diante de tanta notícia ruim, Campelo, da FGV, não vê a confiança tanto de empresários quanto do consumidor avançar nesse primeiro trimestre, mas diz que pode ocorrer alguma melhora no lado empresarial no segundo semestre. Os níveis de confiança estão nas mínimas históricas, do consumidor ao empresário da indústria.
 
Até a confiança voltar e a economia crescer como se espera, as palavras de ordem vão ser secar, controlar, enxugar, gastar com parcimônia, com cautela, o sentido da palavra austeridade, ensina o professor Deonísio da Silva.
 

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