Artigos e Entrevistas

O trabalhador e a covid-19

Fonte: O Estado de S. Paulo / Almir Pazzianotto Pinto*

 
Aspecto de relevante importância do contrato de trabalho diz respeito à garantia do emprego. O artigo 7.º, I, da Constituição de 1988 protege-o “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de legislação complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. 
 
Por motivos que aqui não cabe examinar, a lei complementar permanece à espera de projeto. Enquanto não for aprovada, a proteção referida no inciso I do artigo 7º se limita “ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6.º, caput e § 1.º, da Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966” – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), artigo 10, I.
 
Após o advento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço são raros os casos de estabilidade. Não é possível demitir arbitrariamente e sem justa causa dirigente sindical; empregado eleito para cargo de direção de comissão interna de prevenção de acidente (Cipa); gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A Lei n.º 8.213/1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, garante a permanência no emprego pelo período de 12 meses do empregado vítima de acidente de trabalho, de doença profissional ou doença do trabalho, constantes de portaria do Ministério do Trabalho. 
 
Há poucos dias o setor empresarial foi surpreendido pela Portaria 2.309, de 28/8, baixada pelo então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. S. Exa. incluiu o coronavírus Sars-CoV-2 na Lista das Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDTT), instituída pelo Ministério da Saúde, para assegurar 12 meses de estabilidade a empregado infectado.
 
As estatísticas referentes a mortos e infectados pela pandemia evoluem dia após dia. No Brasil o número de vítimas de morte ultrapassa os 135 mil. Nos países desenvolvidos, cientistas das melhores universidades travam intensa batalha na busca de vacina infalível e confiável. Os avanços são animadores, mas é impossível prever quando estará ao alcance da população. 
 
A covid-19 não se encaixa nas definições legais de doença profissional ou do trabalho. Segundo a referida lei, doença profissional é “a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade”. Doença do trabalho é “a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais é realizado e com ele se relacione diretamente” (artigo 20, I e II).
 
Disseminada pelo mundo, a pandemia não revela preferência por determinada camada social, profissão, nível intelectual, conhecimento científico. Ignora limites e fronteiras. O grau de risco é aquilatado pela idade ou condição de saúde: quanto mais idosa e frágil a pessoa, maior o perigo de contaminação. Pouco importa se é médico, enfermeiro, comerciário, bancário, operário, motorista, desempregado ou aposentado. A Consolidação das Leis do Trabalho exige de todo empregador a adoção de medidas coletivas de segurança e de proteção à saúde dos empregados; e do empregado, que cuide da higiene pessoal e faça uso de equipamento de proteção individual. São providências gerais e obrigatórias que nada têm que ver com eventual epidemia de gripe, sarampo ou covid-19.
 
A segunda matéria submetida ao leitor diz respeito à natureza de portaria ministerial e à competência funcional de ministro de Estado. Portaria é simples instrução interna destinada à “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência”. Destina-se a “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (Constituição, artigo 87). Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei. Deve obedecer-lhe e exigir dos subordinados que obedeçam a ela.
 
No âmbito do extinto Ministério do Trabalho encontraremos portarias com pretensões de ser geradoras de direitos e obrigações. As origens remontam ao regime militar, época em que era comum desconhecer o princípio da legalidade. 
 
Conceder estabilidade depende de lei específica. Não basta mera portaria interna, em que a inclusão ou exclusão de determinada doença depende de decisão aleatória, tomada no recesso do gabinete por ministro de Estado, seja da Saúde, da Economia ou do Trabalho.
 
Em 8/9 o Estado publicou editorial com o título Portaria desumana. Ali está escrito que para se manifestar contra dispositivos do Código Penal o presidente Jair Bolsonaro, mediante portaria baixada pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, “criou uma aberração jurídica”. Outras aberrações com formato de portaria existem às dezenas no âmbito do Ministério da Economia sob o título de Normas Regulamentadoras relativas à Segurança e Medicina do Trabalho.
 
A Portaria 2.308 foi revogada com a rapidez da aprovação. Menos mal. Espera-se que outras, tão aberrantes quanto ela e a Portaria n.º 2.208, a que se refere o editorial do Estado, tenham idêntico destino, para preservação do princípio da legalidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.
 
*Almir Pazzianotto Pinto, advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho. É autor de "A Falsa República".
 

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