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Terceirização: 170 anos de proibição

Fonte: Justificando / Pedro Daniel Blanco*
 
Pouco se fala sobre a história da intermediação da mão de obra, como se fosse um modelo bem acabado e moderno de composição das relações de trabalho.


 
Pulverizada nas últimas décadas por força de um processo verdadeiramente ideológico, não valendo-se de permissivos propriamente jurídicos para contaminar o cotidiano empregatício nacional desde pelo menos a década de 1970, quando se teve notícias da utilização do termo “terceirização”, o modelo empresarial rompeu ilicitamente a bilateralidade inerente aos laços trabalhistas, contando para isso com a orquestral e bem conhecida burla do direito do trabalho, inclusive, ou sobretudo, por parte dos poderes públicos.
 
O legislador pós-golpe de 2016 chegou ao ponto de pretender legalizar irrestritamente a chamada “terceirização”, por meio das inconstitucionais leis 13.429 e 13.467, sem que para isso sequer incluísse o termo no ordenamento jurídico. Termo, aliás, que carrega a mácula inexorável de dar aos trabalhadores envolvidos a condição de “terceiros”, alheios, portanto, à relação da qual fazem parte.
 
Antes correspondesse apenas a um problema semântico, a que poderiam ser apresentadas soluções linguísticas, tais quais a redenominação da técnica exploratória para “subcontratação”, “subempreitada”, “externalização”, “outsourcing” ou qualquer outra imagem terminológica que pretendesse abrandar a crueldade organizacional que lhe é inerente.
 
"Mas a questão situa-se sabidamente no campo empírico, visível ao cotidiano empregatício do país."
 
Já é um lugar comum observar o dramático rebaixamento funcional dos trabalhadores “terceirizados”, especialmente se comparados aos também fragilizados empregados “diretos”, como se faticamente deixassem de compor os desenhos organizacionais das tomadoras de sua atividade.
 
A experiência não deixa de demonstrar que, em larga escala, o buscado pela intermediação do emprego à brasileira é o trabalho puro, despersonalizado, invisível, profundamente reificado.
 
A propósito, exponencialmente mais voraz, o processo de reificação constituinte das relações “tipicamente terceirizadas”, conforme terminologia adotada em consagrado estudo do Dieese, reflete-se nos conhecidos índices de precarização presentes nessas atividades, diretamente ligados a menores taxas de remuneração, escolaridade ou idade dos trabalhadores, além de maiores jornadas de trabalho, índices de acidentalidade e de rotatividade no emprego, para citar alguns.
 
Há notícias de que, em 1972, cerca de 70 mil trabalhadores temporários atuavam junto a 10 mil empresas tomadoras no país, mesmo antes da instituição do regime de trabalho temporário pela Lei 6.019, o que demonstra que parcela significativa da empresarialidade brasileira não carrega em seu know-how o cumprimento estrito aos limites dados pela legislação social às relações trabalhistas.
 
Não por acaso, a enxurrada de penduricalhos legislativos que nas últimas décadas flexibilizaram a legislação do trabalho, além da própria CLT, decorreram do golpe de 1964, marco obscuro que deflagrou a conjuntura política necessária à aprovação de leis como a do FGTS (5.107, em 1966), da “reforma administrativa” (decreto-lei 200, em 1967), do trabalho temporário (6.019, em 1974), de estágio (6.494, em 1977) ou dos serviços de segurança (7.102, em 1983).
 
"Na agenda do autoritarismo, o trabalho encontra-se na posição de alvo constante de investidas, sendo certo que o chamamento sério da sociedade a processos decisórios ligados a direitos sociais implicaria o refutamento da pauta flexibilizante."
 
Assim, sob a perspectiva do trabalho, eis a origem da disposição parlamentar em assumir escancarada e obscenamente o golpe de 2016.
 
Muito semelhantemente, as recentes propostas de “reforma” nas áreas trabalhista e da seguridade social, além de sub-golpes como o congelamento dos gastos públicos pelas próximas décadas, decorreram do ambiente fornecido pela ruptura do processo democrático, contexto no qual pipocaram proposituras legislativas de flagrante retrocesso social, tais quais o simbólico projeto de Lei 6.442, protocolado por representante da bancada ruralista em novembro de 2016, em cujo artigo 3º objetivou legalizar a “remuneração de qualquer espécie” a trabalhadores rurais.
 
É certo que a perspectiva histórica fornece-nos uma outra compreensão sobre as relações de trabalho na atual conjuntura, especialmente para o caso brasileiro, próximo de ser comparado a momentos encontrados no século XIX, em que o mundo via-se palco do duro processo de implementação do capitalismo industrial.
 
Isso porque, tragicamente, já não soam sequer alarmantes notícias como a tentativa de introdução em nosso ordenamento jurídico de fórmulas do truck system (pagamento por gêneros proibido pelo Truck Act, decreto inglês de 1831) ou do marchandage, a vulgar intermediação da mão de obra na França do século XIX, até hoje considerado um delito naquele país. Dados que merecem ser resgatados das antigas bibliotecas.
 
Há de ser lembrado que por um decreto do governo provisório de 2 de março de 1848, debatido e aprovado no âmbito da Comissão de Luxemburgo, presidida pelos socialistas Louis Blanc e Albert, o marchandage foi expressamente proibido na França.
 
Escritos da época chegaram a apontá-lo como uma das principais reivindicações que levaram os trabalhadores franceses às lutas revolucionárias daquela década, dado o caráter odioso da vinculação empregatícia por meio da parasitária existência do marchandeur.
 
"Ilustrativamente, a histórica manifestação que em 1840 levou 100 mil operários à planície de Saint-Denis teve como mote duas demandas fundamentais para os trabalhadores franceses: a proibição do marchandage e a redução da jornada de trabalho para 10 horas."
 
Para que se contextualize, um clássico verbete do Dictionnaire de la langue française, assinado pelo lexicógrafo Émile Littré, define marchandage como “a ação de um trabalhador que tem um trabalho contratado e o executa por meio de outros trabalhadores”.  Conceituação aperfeiçoada historicamente até a redação do artigo L. 8231-1 do Code du Travail, que o trata como “qualquer operação de fornecimento de mão de obra com fins lucrativos, que prejudique o empregado com quem se relaciona ou evite a aplicação de disposições legais ou de estipulações de uma convenção ou de acordo coletivo de trabalho”.
 
O artigo L. 8234-2 daquele diploma legal estende as sanções pelo cometimento do delito às pessoas jurídicas, que por ele podem ser igualmente responsáveis, atraindo inclusive a incidência do Código Penal.
 
A tradução que se dá ao termo marchandage remonta à ação de “regatear”, verbo de utilização incomum, cujos sentidos podem ser expressos em ideias como “pechinchar” ou “negociar” o valor de algo com o interesse direto em seu barateamento. Este, aliás, é um dos critérios largamente utilizados no mercado brasileiro das licitações para a contratação de “empresas prestadoras de serviço”, entre si concorrentes para inserir mão de obra de baixo custo em espaços da administração pública.
 
Se a literária máquina do tempo concebida por H. G. Wells, em 1895, estivesse à disposição dos revolucionários franceses que lutaram contra a vulgar intermediação da mão de obra naquele século, e ao menos viveram para assistir à edição do decreto de 2 de março, avançar 170 anos no curso do tempo corresponderia, em relação ao aspecto aqui tratado, a uma difícil experiência, semelhante ao encontro dos terríveis morlocks da ficção científica.
 
As notícias provenientes de países como o Brasil lhes dariam informações sobre o desenfreado avanço, anistórico e oportunista, da legalização do marchandeur, devidamente inscrito no CNPJ e registrado na junta comercial com capital social de 10 salários mínimos (lei 6.019, art. 4º-B, III).
 
O revisitar da história da “terceirização”, figura reconhecidamente oriunda dos primórdios do capitalismo, assim como, de um modo geral, o revisitar da história das relações entre capital e trabalho, são os meios necessários para o fomento da crítica contemporânea ao discurso que insiste em definir antigas fórmulas de exploração como sinônimo de modernidade.
 
Que o legado do processo revolucionário de 170 anos atrás seja lembrado como uma conquista da classe trabalhadora, que ao longo de toda a sua história sempre refutou a intermediação do emprego, a inaceitável locação de gente repudiada mundialmente.
 
*Pedro Daniel Blanco Alves é advogado.
 

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