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'Trabalho portuário não deixa de existir, mas configuração ficará mais distinta', diz Lucas Rênio

Fonte: A Tribuna On-line
 
Presidente da Comissão de Direito Portuário da OAB de Santos é entrevistado de A Tribuna
 
 
O avanço da tecnologia tem alterado as operações nos portos e, consequentemente, o próprio trabalho portuário. E cabe a esses trabalhadores se adaptar à nova realidade e, principalmente, se requalificar. A análise é do advogado e especialista em trabalho portuário Lucas Rênio. Sócio da Ruy de Mello Miller Advocacia e presidente da Comissão de Direito Portuário da seccional de Santos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ele destaca que já há uma tendência de redução do trabalho portuário avulso e de um aumento da atividade vinculada, com a contratação desses profissionais pelos terminais. E nesse cenário, novas qualificações se mostram estratégias. Esses e outros aspectos do futuro da atividade laboral portuária serão tratados por Rênio no webinar Trabalho Portuário: Passado, Presente e Futuro, a ser realizado na próxima quinta-feira, às 9 horas (confira detalhes sobre como assistir o debate no destaque ao lado). Na entrevista a seguir, ele destaca algumas das mudanças previstas para o cotidiano dos trabalhos portuários nas próximas décadas.
 
Os avanços tecnológicos das últimas décadas, em especial a maior utilização de os sistemas automatizados, tiveram um grande impacto nas atividades econômicas, inclusive na portuária. Em relação aos trabalhadores portuários avulsos, nesse processo, temos uma gradativa redução no número de profissionais nas equipes de trabalho, nos ternos. Com a continuidade dessa evolução, que novos impactos podemos esperar para os avulsos?
 
Os benefícios da evolução tecnológica são inegáveis e estão presentes nos mais diversos segmentos da sociedade. No caso específico do porto, esse fenômeno evolutivo tem se revelado indispensável para que os players do setor atendam padrões cada vez mais elevados de eficiência, segurança e agilidade impostos pela logística globalizada. Essas inovações têm transformado as características do trabalho portuário nas últimas décadas, reduzindo drasticamente a necessidade de esforço humano na movimentação das cargas. Em razão disso as fainas vão se tornando ambientalmente mais saudáveis e operacionalmente mais técnicas. O contêiner e o shiploader (equipamento de carregamento de cargas a granel, tradicionalmente grãos ou sacarias) são exemplos clássicos desse cenário de modernização, que se intensifica quando olhamos para a 4ª Revolução Industrial e a expansão do conceito de terminal portuário automatizado - ghost terminal. O trabalho portuário não deixará de existir, mas sua configuração ficará cada vez mais distinta. Os trabalhadores portuários da atualidade precisam se adaptar e concentrar esforços no sentido de uma requalificação profissional que envolva operação remota de aparelhos, manutenção de equipamentos etc. Assim como já aconteceu com os consertadores diante do contêiner e os conferentes quanto ao sistema informatizado dos terminais de granel sólido, outras atividades se tornarão obsoletas num futuro próximo. Nos terminais automatizados, por exemplo, os terminal tractors (caminhão de pátio) ocupados por operadores dão lugar a AGVs (Automated Guided Vehicles ou, em tradução livre, veículos autoguiados) sem motoristas. O redirecionamento profissional para o exercício de outras atividades, dentro ou fora do porto, é uma das principais medidas preconizadas pela OIT (Organização Internacional do Comércio) em sua Recomendação n. 145 para atenuar os impactos sociais da modernização.
 
Sobre os terminais portuários totalmente automatizados ou controlados remotamente - os ghost terminals, como disse - já são uma realidade em complexos marítimos do Mar do Norte e no Extremo Oriente. Podemos esperar essa realidade para o Brasil? Quando?
 
O Brasil precisa acompanhar as tendências de melhores práticas e de ritmo operacional que vigoram no contexto internacional, sob pena de ficar marginalizado em termos de logística globalizada. O incremento de produtividade de um ghost terminal gira em torno de 30%, além da redução dos riscos de acidentes e da economia com custos operacionais. Apesar do alto investimento envolvido e da complexidade técnica de um projeto desse tipo, é crível que nas próximas duas décadas o Brasil conte com projetos concretos de terminais totalmente automatizados. Isso sem prejuízo, num menor espaço de tempo, da crescente automação de setores dos terminais já existentes.
 
No artigo A Convenção n° 137 da OIT e o futuro do trabalho portuário no Brasil, de sua autoria com o procurador do trabalho e coordenador nacional do Trabalho Portuário e Aquaviário do Ministério Público do Trabalho, Augusto Grieco Sant’Anna Meirinho, vocês destacam que "num futuro inevitável, o seu 'trabalho nos portos' (dos trabalhadores portuários avulsos) não será mais no navio, no cais, no pátio e talvez nem mesmo na operação". No início dessa entrevista, o sr. também citou a necessidade do avulso se adaptar e ser redirecionado. O avulso continua existindo no futuro do setor?
 
O trabalho portuário é o exemplo mais conhecido de contratação sob a modalidade avulsa, e isso se deve às origens do comércio marítimo com suas sazonalidades e irregularidades nas escalas das embarcações. Essa já não é mais a realidade dominante, e muitos portos contam atualmente com fluxos operacionais regulares. Essa regularidade, somada às vantagens de a empresa contar com uma equipe recrutada, treinada e coordenada por ela própria, tem gerado uma tendência de redução do espaço para o trabalho avulso. O tamanho e a velocidade dessa redução de espaço para o trabalho avulso dependerão muito da sua atratividade em termos de custo, qualificação e disciplina. Vale destacar que a Lei n. 12.815/2013 (atual marco regulador do setor), assim como já ocorria com a Lei n. 8.630/1993 (antiga Lei dos Portos), garante ao operador portuário o direito de contar com uma equipe operacional 100% vinculada. Conforme previsto na Convenção n. 137 da OIT, que é hierarquicamente superior à Lei dos Portos, o pessoal inscrito no Órgão Gestor de Mão de Obra (Ogmo) tem prioridade para a vinculação empregatícia. Essa linha do critério preferencial é reforçada pelos Princípios Constitucionais da Livre Iniciativa e da Liberdade Profissional, além do próprio sentido histórico da mens legis envolvida no texto da Lei dos Portos de 1993.
 
Seguindo esse raciocínio, em uma redução do espaço para o avulso, qual o futuro do Órgão Gestor de Mão de Obra? Em abril, decisão do TST abriu um precedente para que as empresas contratem avulsos pelos sindicatos e não pelo Ogmo. Nesse futuro cenário do trabalho portuário, teremos uma revalorização dos sindicatos, em detrimento ao Ogmo?
 
Além de ilegal sob o prisma de uma interpretação sistemática e teleológica da Lei dos Portos, da CLT e da Constituição Federal, a escalação de trabalhadores por parte dos sindicatos é um retrocesso histórico. Assim como aconteceu em Portugal e em outros países, o processo de transição do trabalho portuário precisa andar pra frente e não pra trás. Os sindicatos devem concentrar esforços em temas como a preparação dos seus representados para a crescente automação das operações, por exemplo. A Lei de 1993, assim como a de 2013, seria inaceitavelmente autofágica e contraditória se criasse uma instituição para gerir o trabalho avulso em substituição aos sindicatos e, ao mesmo tempo, permitisse que um simples pacto coletivo privado afastasse tal instituição da sua tarefa primordial. Aliás, nos termos do art. 611-B da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), qualquer acordo coletivo ou convenção coletiva que exclua o Ogmo da gestão do trabalho avulso é ilegal pelo fato de que compromete questões de saúde, higiene e segurança do trabalho. Futuramente os Ogmos podem ser transformados em Empresas de Trabalho Portuário (ETPs), assim como foi previsto para os Ogmos em Portugal. No modelo em referência, podem funcionar duas ou mais ETPs em cada porto, concorrendo entre si, num sistema parecido com a tercerirização ou o trabalho temporário. De qualquer forma, o Ogmo do presente precisa ser empoderado no exercício das suas atribuições para que tenha mais liberdade e segurança jurídica para lidar, por exemplo, com questões de seleção, disciplina e controle de contingente do trabalho avulso.
 
Nesse mesmo artigo sobre o futuro do trabalho portuário no Brasil, vocês destacam a necessidade dessa migração profissional. Algo semelhante chegou a ser proposto no processo de modernização dos portos, quando as operações foram privatizadas nos anos 90. Nessa época, falava-se muito do portuário se tornar um profissional multipropósito. E isso acabou não ocorrendo. Agora, com a automação, teremos essa migração profissional? Por quê essa situação teria um resultado diferente do que o registrado nos anos 90? E como garantir essa migração?
 
Desde 1973 a OIT preconiza, através da sua Recomendação n. 145, que a multifuncionalidade é uma das medidas necessárias e eficazes para o futuro sustentável do trabalho portuário. A referida norma internacional dispõe que o "número de categorias especializadas deveria ser reduzido e deveriam ser modificadas suas atribuições, na medida em que estiver sendo modificada a natureza do trabalho, e que um número mais elevado de trabalhadores se capacitem para efetuar uma variedade maior de tarefas", e que deveria "ser suprimida, quando possível, a distinção entre trabalho a bordo e trabalho em terra, afim de conseguir uma maior possibilidade de intercâmbio de mão-de-obra, maior flexibilidade na designação do trabalho e maior rendimento das operações". No Brasil, esse instituto ficou travado durante as últimas décadas devido à exigência legal de que houvesse negociação coletiva para a sua implantação no trabalho avulso. A Lei n. 14.047/2020 (que fez uma minirreforma na Lei dos Portos) retirou essa exigência e trouxe uma boa expectativa no sentido de que a multifuncionalidade vá se desenvolver. No trabalho vinculado, a atuação multifuncional nunca dependeu de negociação coletiva, mas o tema não tem avançado em virtude de resistências culturais. A questão precisa avançar tanto no trabalho avulso quanto no vinculado, pois é peça-chave para a produtividade das operações e a garantia de oportunidades para os trabalhadores.
 

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