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Nada mudou no dirigismo de acusações no Brasil?

Fonte: O Globo / Diogo Piloni e Gabriela Costa*
 
Acusar irresponsavelmente o Estado quando contrariados parece ainda ser o caso de agentes ocultos no setor de portos
 
 
A profissionalização do setor portuário brasileiro é um caminho sem volta. Mas,  para enterrar as velhas práticas, profissionalizar as relações de negócio e afastar estranhas variáveis,  é preciso muita vontade, estudo, planejamento, diálogo, transparência e, sobretudo, resiliência. Não é tarefa para um dia só.
 
A estratégia de apontar irresponsavelmente “crime” em mecanismos consolidados de proteção de concorrência no setor portuário não é nova e geralmente tem como fim confundir a opinião pública, pressionar o Poder Judiciário e induzir órgãos de controle a decisões que beneficiem interesses específicos — muitas vezes nada republicanos.
 
A cláusula de restrição para a proteção da concorrência é prática comum nas licitações realizadas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Citamos como exemplo a cláusula restritiva no Leilão 02/2019, para movimentação de granéis líquidos combustíveis no Porto de Santos, remédio antitruste que impediu a concentração do mercado de combustíveis na Ilha de Barnabé, aumentando a concorrência no porto santista.
 
Os editais de arrendamento dos terminais portuários STS 14 e STS14A, voltados para a movimentação de celulose, seguiram padrões que asseguram a livre concorrência desde a fase de elaboração dos estudos até a realização da sessão pública. Foram recebidas e analisadas 547 contribuições de mais de uma dezena de representantes setoriais. A restrição de participação foi uma destas, o que, além de ser plenamente natural e legal, reforça que a consulta realizada pela Antaq não tem apenas o condão formal, mas também avalia e acolhe os argumentos apresentados pela sociedade.
 
Cabe aqui uma breve explicação sobre os remédios antitrustes que uma agência reguladora pode lançar mão em mercados imperfeitos: a produção de celulose brasileira atende predominantemente à exportação (cerca de 70%) e tem como característica a verticalização da cadeia de produção, onde o próprio produtor detém toda a logística de escoamento, desde a produção até o embarque da carga no porto.
 
A verticalização traz desafios para o regulador, pois a competição por fatias de mercado na comercialização da carga pode espraiar para outros setores, como exemplo, o portuário. Um grande player de celulose, detentor de “significativa atividade de armazenagem e movimentação de cargas no Porto de Santos”, pode criar dificuldades para que seu concorrente no mercado de celulose utilize o ativo portuário, negando acesso ao terminal ou praticando preços abusivos de movimentação, o que é comumente chamado de price-squeeze.
 
Tal prática, que para um leigo poderia aparentar uma briga por espaço no escasso ativo portuário, camuflaria uma disputa maior sobre a comercialização de celulose no mercado mundial. Por isso,  a importância da restrição da participação de players que detenham “significativa atividade de armazenagem e movimentação de cargas no Porto de Santos”. Valioso destacar que essa restrição está corroborada pela Superintendência Geral do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) e foi apreciada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
 
Pensar a cadeia logística em uma perspectiva geral e complementar é o grande desafio do planejamento do Ministério da Infraestrutura a longo prazo. O Plano Nacional de Logística Portuária e os Planos Mestres dos portos organizados foram desenhados reforçando a ideia de que portos não são um fim em si mesmo, mas representam uma etapa de uma complexa tarefa de escoamento da produção nacional.
 
Não concordar com a política pública em desenvolvimento para o setor de infraestrutura é legítimo. Acusar agentes públicos de “dirigismo licitatório” por discordância conceitual é impróprio e irresponsável. O corpo técnico do Estado brasileiro merece respeito.

Texto redigido em resposta ao artigo “Nada mudou no dirigismo de licitações no Brasil”, de Modesto Carvalhosa, publicado no GLOBO de 04/08/20
 
*Diogo Piloni  é  secretário nacional de portos e transportes aquaviários do Ministério da Infraestrutura / Gabriela Costa é diretora da Agência Nacional de Transportes Aquaviários
 

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