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Normas regulamentadoras e princípio da legalidade

Fonte: O Estado de S. Paulo / Almir Pazzianotto Pinto*
 
Portarias ministeriais beiram o absurdo ou são simplesmente de execução impossível
 
Ensinou Seabra Fagundes (1910-1993) que “o Estado, uma vez constituído, realiza os seus fins através de três funções em que se reparte a sua atividade: legislação, administração e jurisdição. A função legislativa liga-se aos fenômenos de formação do direito, enquanto as outras duas, administrativa e jurisdicional, se prendem à fase de sua realização. Legislar (editar o direito positivo), administrar (aplicar a lei de ofício) e julgar (aplicar a lei contenciosamente) são fases da atividade estatal que se completam e que a esgotam em extensão. O exercício das funções é distribuído pelos órgãos denominados Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário” (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, Ed. Forense, RJ, 1957, pág. 17).
 
O princípio da legalidade, examinado por Seabra Fagundes, estava presente no artigo 179, I, da Carta Imperial de 1824, no artigo 72, parágrafo 1.º, da Constituição de 1891 e nas Constituições que se lhes seguiram em 1934 e 1946. A Carta de 1937 o omitiu por óbvias razões e as Constituições de 1967 e 1969 (Emenda n.º 1) o abrigaram de maneira restrita, pois facultavam ao Poder Executivo baixar atos institucionais e complementares imunes ao exame pelo Poder Judiciário. Na Constituição de 1988 o princípio da legalidade foi restabelecido pelo artigo 5.º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
 
Portaria ministerial não integra o processo legislativo disciplinado pela Constituição. Trata-se de ato normativo interno destinado a ordenar os serviços executados por servidores de determinado estabelecimento ou repartição. Não atribui direitos, nem impõe obrigações e penalidades a terceiros. Desde o regime militar, todavia, o extinto Ministério do Trabalho - reduzido à condição de secretaria do Ministério da Economia pelo presidente Jair Bolsonaro - baixa portarias para aprovar normas regulamentadoras sobre higiene e segurança do trabalho, com regras impositivas que beiram o absurdo ou de impossível execução.
 
Decisão inédita do Tribunal Superior do Trabalho (TST) analisou em profundidade o problema de portarias que pretendem legislar. Refiro-me ao Processo AI-RR 0000017-64.2009, relatado pelo ministro Cláudio Mascarenhas Brandão. Ao decidir sobre o poder coercitivo de normas regulamentadoras, assim decidiu a egrégia 7.ª Turma: “Entretanto, analisando a mencionada NR não há qualquer imposição para a concessão do intervalo. E, ainda que tivesse qualquer imperativo neste sentido, entende-se que não caberia à Portaria do MTE, mediante NR, estipular tal obrigação; isso porque a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso II estabelece: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Aliás, quanto ao teor das Normas Regulamentares discorreu o ilustre jurista, ex-ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Exmo. Dr. Almir Pazzianotto Pinto, em seu artigo Portaria com força de lei: ‘Somos todos favoráveis à proteção dos trabalhadores contra doenças e acidentes, à preservação da salubridade, à utilização de ferramentas e de máquinas dotadas de equipamentos que evitem infortúnios. Ninguém, entretanto, pode ser compelido por portaria ministerial a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sob pena de quebra do princípio da legalidade. As Normas Regulamentadoras encerram, ao lado de determinações saudáveis, outras de execução impossível, ou que abrem ampla brecha para interpretações subjetivas, de acordo com o perfil ideológico do Auditor Fiscal’”.
 
São 32 as normas regulamentadoras. A NR 1 trata das Disposições Gerais. A NR 2 foi revogada. Todas se ocupam de assuntos atinentes à medicina e à segurança do trabalho. Temos portarias relativas a equipamentos de proteção individual; programa de controle médico de saúde ocupacional; edificações, máquinas e equipamentos. A NR 17 dispõe sobre “a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores” (ergonomia). O item 17.5.2 recomenda que em atividades internas de escritório o índice de temperatura permaneça entre 20 e 23 graus centígrados, a velocidade do ar não ultrapasse 0,75 metros por segundo e a umidade relativa não baixe a menos de 40%. A NR 18 - Condições e Meio Ambiente na Indústria da Construção - determina, com precisão milimétrica, as medidas de alojamentos, lavatórios, armários, banheiros, escadas, rampas, o formato e o material que deve ser utilizado em assentos dos veículos. Vale a pena conhecer o glossário, ao definir acidente fatal “quando morre a vítima”.
 
Portarias ministeriais redigidas em gabinetes fechados, por pessoas despidas de poder legislativo, concedem prerrogativas ilegais, obscuras e ilimitadas a auditores fiscais do trabalho e alimentam o clima de insegurança jurídica que cerca milhões de empregadores. O acórdão do TST lança luz sobre o problema e deverá balizar futuras sentenças sobre a matéria. Afinal, está em questão o princípio clássico da legalidade.
 
*Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
 

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