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AFRMM – uma anomalia brasileira (parte 1)

Fonte: Portos e Navios / Omar Rached*
 
O Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante é um ônus suportado pelos consumidores brasileiros de produtos importados desde o ano de 1987, quando foi instituído pelo Decreto Lei 2.404/87. Trata-se de uma intervenção estatal no setor de serviços relacionados ao comércio internacional, com objetivo de desenvolver e reconstruir a frota da marinha mercante brasileira, extinta em 1987.
 
A reconstrução era necessária porque em 1987 a empresa estatal que cumpria o papel da marinha mercante nacional, a Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, estava num momento crítico de insolvência financeira e inviabilidade do modelo de negócios diante da concorrência dos armadores internacionais. Posteriormente, viria a falir e sofrer a penhora judicial de suas embarcações.
 
Dessa forma, o AFRMM vem sendo cobrado dos consumidores de produtos importados há mais de trinta anos, sem que exista sequer uma embarcação da marinha mercante no Brasil. Mas o que é uma embarcação mercante? É a que se dedica à prestação de serviço de venda de frete internacional, com a respectiva reserva de praça, emissão de conhecimento de embarque marítimo e garantia do transporte marítimo de longo curso mediante determinadas condições contratuais, porto a porto. Sob essa perspectiva, não existe no Brasil, desde 1987, a possibilidade de se cotar ou contratar o frete internacional marítimo de longo curso.
 
Podemos constatar que o AFRMM nunca cumpriu com seus objetivos, tornando-se, ao longo do tempo, um custo puro suportado pelos importadores e depois repassado ao consumidor final. Com a evolução das regras do comércio internacional, alguns conceitos considerados normais na década de 80, como a substituição das importações, protecionismo, estímulo ao conteúdo local e discriminação entre o produto e serviço nacional ante o importado acabaram se tornando obsoletos, nocivos e também ilegais perante as regras multilaterais do comércio estabelecidas a partir de 1995 pela Organização Mundial do Comércio – OMC.
 
Em síntese, de 1995 para cá o Brasil se distanciou das cadeias de valor globais, tornou-se um dos países mais fechados ao comércio exterior do mundo, o que veio a refletir na redução do investimento externo, desindustrialização, percepção internacional de ambiente hostil a negócios e por final uma excessiva intervenção estatal nas operações de comércio internacional, com o Estado atuando como principal interessado e interveniente. O tempo passou e o Brasil insiste em manter os conceitos defasados dentro do ordenamento jurídico e sistema aduaneiro.
 
Nesse contexto, o AFRMM deve ser visto como uma anomalia brasileira, que não encontra par em outro país do mundo. Embora exista a intervenção estatal na área de navegação mercante em diversos países, os fundos necessários à intervenção estatal são provisionados no orçamento do governo, nunca bancado por uma tarifa ou contribuição do setor privado para um fundo estatal. A forma de intervir é relevante.
 
Dos efeitos nocivos do AFRMM à competitividade do Brasil
 
O fato concreto é que, mesmo se algum operador de comércio exterior brasileiro ou estrangeiro quiser, por algum motivo, comprar um serviço de frete internacional de uma embarcação da marinha mercante brasileira, não obterá êxito. Não existe oferta para esse produto, ainda que possa teoricamente existir demanda.
 
Existem muitos teóricos que, por saudosismo, preferem acreditar que o Brasil pode competir no mercado de fretes internacionais. Ao mesmo, tempo, concordam os estudiosos no tema que a possibilidade do Brasil possuir marinha mercante competitiva nos dias atuais é simplesmente impossível. Isso porque esses serviços são muito concentrados em poucos operadores que possuem as grandes rotas logísticas, o que gera uma economia de escala que, por sua vez, retroalimenta esse mercado extremamente competitivo, dinâmico, que exige aportes financeiros na casa das centenas de bilhões de dólares por ano, para que o sistema possa funcionar de forma correta. O ganho é por escala e nunca por frete individual contratado.
 
Como citado, o distanciamento do Brasil das cadeias logísticas globais devido às políticas protecionistas de comércio exterior, fez com que o fluxo representativo de serviço de frete internacional longo curso fosse diminuído drasticamente ao longo dos anos. O efeito é a escassez de embarcações servindo o Brasil, tornando as rotas logísticas de importação e exportação do Brasil deficitárias, ineficientes e pouco lucrativas. A oferta e demanda se adequaram à nova realidade e hoje não possuímos volume nem valores de comércio que justifiquem a inserção de mais embarcações mercantes.
 
O AFRMM apenas funcionou como sistema restritivo de substituição das importações num momento de reserva de mercado de fretes, na década de 80, quando o Banco Central não autorizava a remessa de valores de pagamento de fretes ao exterior. Esse procedimento se chamava conferência de fretes, onde o governo intervinha autorizando ou não a contratação de fretes internacionais, distribuindo, a seu critério e discrição, quais fretes seriam contratados no Brasil e quais no exterior.
 
Muito mudou desde então nos princípios e regras do comércio exterior, mas insistimos ainda em permanecer com a cobrança de frete internacional (25% sobre o valor do serviço) sem que exista a contraprestação de serviço, agregação alguma de valor ou mesmo qualquer motivo racional que dê base à cobrança de tal contribuição ou tarifa. Hoje é muito difícil explicar a utilidade do AFRMM a qualquer um, brasileiro ou estrangeiro, porque o argumento da existência do adicional não se sustenta, sob nenhuma perspectiva (legal, econômica ou estratégica).
 
Não é exagero dizer que o AFRMM é uma barreira tarifária ao comércio, que encarece todos produtos importados pelo modo marítimo de transporte (80% do fluxo de comércio brasileiro) e que se apresenta como uma intervenção imprópria do Estado na economia, dando causa a um fator oneroso a mais de tarifas e encargos incidentes na importação. Em resumo, não temos como possuir hoje uma marinha mercante e mesmo se ela existisse, não se sustentaria por falta absoluta de demanda de mercado.
 
Dos impactos aduaneiros da cobrança do AFRMM
 
Existem três grandes impactos na esfera operacional causados pela manutenção do AFRMM em nosso sistema aduaneiro. O primeiro impacto é de tempo, para que uma seleção de mais de uma centena de informações sejam providas pelos agentes de carga e/ou transportadores internacionais sejam digitadas/inseridas no Sistema de Controle de Arrecadação do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (também conhecido como CE Mercante), como previsto nas Instruções Normativas da Receita Federal números 800 de 2007 (Anexos I a IV) e 1471 de 2014.
 
O segundo impacto é financeiro, que se traduz em ônus para o importador e depois repassado no custo final ao consumidor. Para a utilização do sistema Mercante é preciso pagar a Tarifa de Utilização do Mercante, no valor de R$ 21,20 (vinte e um reais e vinte centavos – sendo 20 reais de taxa e mais 1,20 pela emissão de boleto de cobrança) por conhecimento de embarque, conforme previsto no artigo 20 da Instrução Normativa RFB 1471 de 2014. Além disso, será necessário pagar uma própria contribuição de intervenção estatal – o AFRMM – que é calculado não apenas pelo percentual de 25% do frete internacional, mas tem como base todas despesas conexas a esse, como despesas portuárias de manipulação da carga no destino, também conhecido como capatazia (mercadorias a granel) ou Terminal Handling Charges (THC – para carga em contêiner).
 
O terceiro impacto é ainda mais grave. Se trata da indisponibilidade da posse ou propriedade da mercadoria, como se pertencesse à Receita Federal do Brasil, e não ao consignatário. Os dispositivos contidos nos artigos 39 da IN RFB 800 de 2007, 35 da IN RFB 1471/2014 e 51 da IN SRF 680/2006 impedem a entrega da carga ao proprietário caso o AFRMM e TUM não tenham sido pagos. Assim, se configura uma flagrante ilegalidade, como se a propriedade da mercadoria fosse transmitida ao Estado sem a anuência do real proprietário. A Receita Federal do Brasil, por sua vez, se apropria momentaneamente da posse e propriedade da carga, exerce coação por meios imorais, ilícitos e ilegais, forçando o recolhimento do AFRMM e TUM sob pena de retenção da mercadoria.
 
No momento atual, as autoridades governamentais na área de comércio exterior têm como prioridade total a facilitação do comércio, a liberdade econômica e fluidez da logística internacional, buscando a redução dos custos invisíveis e improdutivos. É espantoso que a TUM e o AFRMM nunca tenham sido questionados legalmente já que seus impactos aduaneiros são extremamente onerosos aos importadores e o Brasil não pode aceitar mais o desperdício de tempo e dinheiro. Muitos setores produtivos do Brasil, incluindo os grandes exportadores do setor agrícola e automotivo são excessivamente castigados pelo peso inútil que carregam. Ao final, esse desperdício tem como efeito deletério o aumento dos preços finais ao consumidor e da inflação acumulada. 
 
Diante desse quadro avassalador, por que o AFRMM mantém sua vigência ao longo de décadas? 
 
Continua em AFRMM – uma anomalia brasileira (parte 2)
 
*Omar Rached é advogado e MSc em Logística
 

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