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O Direito do Trabalho dos Flintstones aos Jetsons

Fonte: Jota / Cássio Casagrande*
 
A revolução digital não vai libertar o trabalhador de sua condição subalterna – muito pelo contrário
 
 
Em algum momento da pré-história, Fred Flintstone se apresenta na empresa do Sr. Pedregulho, carregando a marmita preparada pela esposa Wilma Flintstone. Logo preenche o cartão-ponto, perfurando-o com a ajuda da mordida de um jacaré. Ele é empregado de uma pedreira e durante extenuantes e longas oito horas pilota uma espécie de dinossauro-escavadeira (bem, o homem não conviveu com os dinossauros, foi apenas uma divertida licença poética da dupla William Hanna e Joseph Barbera). O trabalho dele é físico, fatigante, repetitivo e não há espaço para criatividade. Há controle e supervisão total, no modo panóptico: ele trabalha o dia inteiro sob às vistas do patrão, que está sempre de olho para ver se o empregado não está de corpo mole.
 
Quando o Sr. Pedregulho soa o apito da fábrica, puxando rabo de uma ave, Fred se atira da cabine e desliza pelas costas do dinossauro, berrando yaba-daba-doo, pois chegou o fim do cansativo expediente e ele poderá resgatar a sua individualidade, voltando a fazer o que realmente gosta: jogar boliche.
 
Na paródia de Hanna e Barbera, Fred Flintstone era um trabalhador típico do mundo industrial e do sistema taylorista de trabalho. Ele levava uma vida dura, como a do típico “blue collar worker” americano. Mas o sacrifício valia à pena, pois o patrão Pedregulho lhe pagava um bom salário e Fred tinha casa e automóvel próprios, levando uma confortável vida de classe média. Parece até que ele também gozava de muitos direitos trabalhistas, inclusive estabilidade no emprego: despedido em quase todo episódio, no seguinte ele está reintegrado à empresa!
 
Embora o desenho animado “Os Flintstones” se passe na pré-história, Hanna
e Barbera o utilizaram para retratar satiricamente o american way of life da
classe operária americana dos anos 1960, época de empregos abundantes,
altas taxas de sindicalização e salários generosos.
 
Com o sucesso retumbante da animação seriada, a consagrada dupla de cartunistas começou a imaginar uma versão que se passasse em um distante futuro, tentando antecipar como seria essa vida da classe trabalhadora dali a um século, no imaginário ano de 2062, quando o progresso tecnológico transformaria a sociedade e, também, as próprias relações de trabalho.
 
Ainda faltam 43 anos para o mundo futurista imaginado por Hanna e Barbera, mas algumas coisas que eles intuíram já estão por aí, como robôs, celulares e TVs de plasma. E também o trabalho sob as novas condições da “revolução 4.0”. Como todo exercício de adivinhação sobre o futuro, eles acertaram algumas previsões e erraram outras, inclusive sobre como seriam as relações laborais na Era Digital.
 
Vamos então ao ano de 2062 encontrar esse trabalhador pós-revolução tecnológica. George Jetson é um “white collar worker”, ou seja, um trabalhador de escritório que não suja suas mãos. Seu trabalho é intelectual, e consiste basicamente em apertar botões em um grande computador. Na sua empresa, ele interage com robôs programados com uso de algoritmos, preparados para fazer várias tarefas anteriormente desempenhadas por humanos. A sua jornada é flexível e bastante reduzida: Jetson trabalha apenas duas horas por semana na empresa!
 
Porém, se atentarmos bem, a vida de George Jetson não é muito diferente da de Fred Flintstone, especialmente porque ele está sob constante supervisão do seu chefe, o Sr. Spacely, que o vigia permanentemente como dezenas de câmeras e monitores de computador. E, com frequência, lhe dá tremendas broncas e o despede em quase todo episódio.
 
Mas será que no mundo futurista dos Jetsons haverá ainda Direito do Trabalho?
 
Temos convivido, já há alguns anos, com o discurso da obsolescência do Direito do Trabalho. Os ataques políticos à legislação trabalhista procuram se sustentar, dentre outros argumentos economicistas, em uma suposta incompatibilidade das normas laborais com a modernidade tecnológica, uma vez que elas teriam sido concebidas no século XIX como resposta a formas de organização fabril que estariam em vias de desaparecer no nosso “admirável mundo novo”. Assim, nessa visão ingênua e algo deturpada, o Direito do Trabalho seria um anacronismo tão grande quanto as velhas fábricas de antanho, que cuspiam rolos de fumaça negra pelas suas longas chaminés de tijolos. O Direito Laboral estaria, nessa linha de pensamento, tão defasado quanto o modelo fordista de produção, ao qual ele foi largamente associado.
 
É verdade, evidentemente, que o Direito do Trabalho é filho da Revolução Industrial (e, portanto, do capitalismo industrial). Aliás, em sua primeira infância, esse novo ramo da ciência jurídica era justamente apelidado de “Direito Industrial”. Depois, à medida em que se percebeu que o trabalhador deveria ser o foco da legislação social, a disciplina passou a ser conhecida como “Direito Operário” – imagem que, de toda a forma, remetia ao operariado das grandes fábricas (e ele assim chegou ao Brasil, na pena de Evaristo de Moraes, em 1903, nos Apontamentos de Direito Operário, primeira obra do juslaboralismo nacional).
 
Quando a legislação laboral passou a ser aplicada para além do mundo fabril, e à medida em que a sua doutrina ia se separando, como uma costela de Adão, da sua matriz civilista, consolidou-se então como “Direito do Trabalho”, revelando assim sua vocação transcendente ao mundo industrial. Por isso, a “forma industrial” de organização do trabalho não significa, necessariamente, “forma fabril de organização de trabalho”, ou, se preferirmos, “forma fordista”. Essa confusão ocorre devido à vinculação excessiva entre taylorismo e fordismo, que não são necessariamente congruentes. É preciso lembrar que o taylorismo precede e, de alguma forma, ultrapassa o fordismo. E aqui é preciso uma breve digressão histórica.
 
A Revolução Industrial significou, do ponto de vista tecnológico, a possibilidade de produção em série (padronização da manufatura) e em grandes quantidades (massificação do consumo). Para tanto, era preciso concentrar centenas ou milhares de trabalhadores em unidades fabris. Esses empregados precisavam estar atentos às máquinas que operavam (daí a origem do termo “operário”). Isso somente era possível com ordem e disciplina. Adotaram-se, para isso, as técnicas militares, já conhecidas para comandar, dirigir e subordinar grandes grupamentos de pessoas reunidas para o cumprimento de uma missão comum.
 
Assim, o trabalhador, ao adentrar à fábrica, veste um uniforme,
obedece a ordens, cumpre um rígido regulamento, é vigiado
constantemente e punido quando quebra as regras.
 
Ele abandona a sua individualidade e se despersonaliza, exatamente como um soldado no exército, salvo que essa sujeição tem hora para começar e terminar. Ele abre mão da igualdade civil e se submete voluntariamente à tirania do capataz.
 
Não à toa, os patrões passaram a ser chamados de “capitães de indústria”, expressão cunhada pelo escritor Thomas Carlyle em 1843 na obra “Passado e Presente”, uma ácida crítica à exploração do proletariado na Inglaterra de então. Além disso, para conseguir aumento de produtividade, o objetivo do patronato era pagar o menor salário possível pelo maior tempo à disposição do trabalhador, no limite de sua exaustão e sujeição. Como se pode imaginar, esse tipo de organização do trabalho foi propício ao “despotismo fabril” e, consequentemente, à fermentação de revoltas operárias, que representavam um distúrbio no sistema de produção.
 
Quando Frederick Taylor abandonou a Faculdade de Direito de Harvard e começou a trabalhar como operador de máquinas na Midvale Steel Company, na Pennsylvania, em 1878, ele percebeu que a gestão industrial exclusivamente militaresca era ineficiente. Sem descurar da disciplina, era preciso organizar melhor o processo produtivo, treinar os trabalhadores, especializar suas tarefas, vigiar não apenas a presença física do trabalhador, mas o ritmo e a forma como as tarefas eram executadas.
 
Para ele, era necessário também cuidar da disposição, da saúde e do padrão de vida do operário, aumentando salários e reduzindo a jornada, não como medida humanitária ou filantrópica, mas para alcançar ganhos de produtividade. Embora o seu método de “administração científica” não tivesse como propósito o desenvolvimento de uma teoria social, é certo que subjacente ao modelo taylorista havia uma premissa de conciliação para o conflito de classes ou, no mínimo, uma fórmula para o seu arrefecimento.
 
O método de Taylor foi tão bem-sucedido que ele deixou a siderúrgica
onde havia se tornado o diretor-geral e passou a atuar como
consultor empresarial em vários tipos de indústrias.
 
É claro que a mais notória experiência prática de aplicação do taylorismo se deu na fábrica de automóveis de Ford em Detroit. Foi o próprio Henri Ford (para quem Taylor não trabalhou) que aperfeiçoou a metodologia, valendo-se, por exemplo, das esteiras rolantes. A partir do fordismo, a forma taylorista de administração científica começou a ser popularizada e empregada muito além da indústria de transformação. Ela se tornou o padrão em praticamente todas as empresas, industriais ou não, e segue sendo aplicada até os dias de hoje, em grandes e pequenas organizações.
 
Aliás, convém lembrar que nos Estados Unidos o termo “indústria” (industry) não se refere exatamente ao conceito originário estrito, em seu sentido “fabril”, mas a todo e qualquer “negócio” (business) setorial, como, por exemplo, na expressão “indústria do entretenimento”, “indústria do fast food”, “indústria lojista ou supermercadista” (retail industry), nas quais nem sempre há operários trabalhando em linha de produção, mas onde são encontrados trabalhadores sob regime de administração científica: empregados treinados, laborando com divisões de tarefas bem definidas, em ritmo controlado e sob alguma forma de supervisão e controle, mais ou menos rígida. Ou seja, um taylorismo sem fordismo.
 
Tampouco se deve incorrer no erro, algo comum, de que o toyotismo significou o fim do taylorismo. A organização “flexível” surgida na fábrica da Toyota, no Japão, incorporou parte da doutrina taylorista, porém voltou-se nesta fase à desconcentração da produção e do trabalho, dando início aos processos de terceirização que se acentuariam a partir dos anos 1970. A ideia de “especialização do trabalho”, uma fórmula criada por Frederick Taylor foi levada ao paroxismo para delimitar as “atividades fins” do próprio empreendimento.
 
O toyotismo pôs fim a algumas dimensões do fordismo (como a ideia de “empresa total”), mas nem de longe afastou as premissas tayloristas em relação à administração da mão de obra dos empregados da empresa “mãe” ou daqueles de suas “terceirizadas”. Assim como, igualmente, algumas concepções do militarismo laboral sobreviveram ao taylorismo-fordismo e chegaram aos dias de hoje (por exemplo, a “uniformização” dos trabalhadores e o poder de vigilância e punição do patronato).
 
Mas e o trabalho na “Era dos Jetsons”, com automação, teletrabalho, algoritmos e uberismo? Será que a revolução digital vai libertar o trabalhador de sua condição subalterna e do poder “potestativo” do empresariado? Mais do que o “fim do trabalho”, estaríamos diante do “fim do emprego” e, consequentemente, do Direito do Trabalho, que surgiu e se desenvolveu para proteger o trabalhador contra os excessos inerentes aos modelos organizacionais militarista-taylorista-fordista-toyotista?
 
Nada indica que isso esteja ocorrendo ou prestes a ocorrer. Eu diria, muito ao contrário: a revolução digital está apenas aprofundando os modelos organizacionais superpostos anteriores, criando novas formas de controle e exploração e, até mesmo, aprofundando as já experimentadas no militarismo, taylorismo, fordismo e toyotismo. A “cibernética”, aliás, foi definida pelo seu fundador, o matemático americano Norbert Wiener, como um instrumento para “desenvolver uma linguagem e técnicas que nos permitam abordar o problema do controle e da comunicação em geral”.
 
E são justamente as grandes empresas de tecnologia (“Big Techs”) que estão usando a cibernética para estabelecer um “neotaylorismo” de controle total sobre os seus empregados. Basta ver o sistema de trabalho nos enormes galpões de logística da Amazon, hoje o maior empregador dos Estados Unidos, com cerca de 250 mil trabalhadores contratados naquele país (e 600 mil em todo o mundo).
 
A Amazon se vale de todas as técnicas de administração dos trabalhadores desenvolvidas desde os primórdios da Revolução Industrial até a presente “Era dos Jetsons”.
 
Nesta que é um exemplo paradigmático de empresas da Revolução Digital,
encontramos o militarismo (uniformização e regulamentos redigidos para
os empregados), o taylorismo (medição do tempo médio destinado a cada
tarefa), o fordismo (sim, há esteiras rolantes nos galpões da Amazon),
o toyotismo (terceirização do serviço de entrega) e uberização (serviço
de entrega com uso de aplicativos de motoristas).
 
E o que mais chama a atenção no caso da Amazon é a utilização de algoritmos para o controle da produtividade dos empregados, experiência que foi amplamente divulgada pela imprensa quando se descobriu que as demissões dos empregados são decididas por um software inteligente que descarta os trabalhadores mais “lerdos” no desempenho de suas tarefas, cuja média é calculada a parir de dos scanners pessoais que os empregados usam para expedição dos produtos de suas prateleiras e esteiras.
 
Porém, tal como os homens que os criaram, os algoritmos não são perfeitos e acabam por reproduzir os preconceitos e vieses humanos. Ao estabelecer uma média temporal para a execução das tarefas (concepção puramente taylorista), os computadores da Amazon esqueceram que entre os seus trabalhadores havia mulheres grávidas, cujo tempo de execução das tarefas era maior devido à sua condição e à maior frequência com que precisavam ir ao banheiro. Resultado: o algoritmo classificou as grávidas entre as mais ineficientes e as despediu. Não é preciso dizer que o fato gerou ações trabalhistas por discriminação.
 
Portanto, no mundo futurista que começamos a experimentar, todo o aparato tecnológico apenas reforçará a condição subalterna da classe trabalhadora. Como muito bem perceberam William Hanna e Joseph Barbera, apesar do tempo que os separa, Fred Flintstone e George Jetson vivem em uma realidade muito semelhante: a do capitalismo que, sim, gera empregos e riqueza, mas, ao mesmo tempo, inexoravelmente, impõe a submissão do homem pelo homem. E, para regular esse paradoxo, precisaremos, cada vez mais, do Direito do Trabalho.
 
***
 
Este artigo foi baseado na palestra que proferi no painel “Novas Dinâmicas de Trabalho – Reflexões Críticas”, do II Seminário Nacional do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (MATI), realizado no dia 30 de agosto de 2019, na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


 
*Cássio Casagrande – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense - UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
 

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