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Nos EUA, é ilegal pressionar empregados em eleições

Fonte: Jota / Cássio Casagrande*
 
Casos como das Lojas Havan demonstram falta de cultura liberal no Brasil
 
Conforme amplamente noticiado pela imprensa, inclusive por este JOTA, durante a campanha eleitoral do primeiro turno, o Sr. Luciano Hang, proprietário da rede de lojas de departamento Havan, reuniu seus empregados e perfilou-os a cantar o hino nacional, constrangeu-os a vestir uma camiseta verde-amarela e a desfilar no pátio da empresa em apoio a um dos candidatos ao pleito presidencial; ato contínuo, o empresário proferiu discurso claro e inequívoco, dizendo que se o adversário deste seu candidato vencesse, teria ele, como empregador, que fechar as lojas e os empregados perderiam, consequentemente, os seus necessários e indispensáveis empregos.
 
Reproduzo trecho do discurso que o lojista fez aos seus trabalhadores, que consta de autos judiciais:
 
“A esquerda, nos últimos 30 anos, e estou dizendo hoje, o PSDB, o PT, principalmente, esses partidos de esquerda como PSOL, PcdoB, PDT, são partidos alinhados com o comunismo. E o comunismo do mal, aquele comunismo que quer destruir a sociedade, destruir a família, destruir os empregos (…) Talvez a Havan não vai abrir mais lojas (sic). E aí se eu não abrir mais lojas ou se nós voltarmos para trás? Você está preparado para sair da Havan? Você está preparado para ganhar a conta da Havan? Você que sonha em ser líder, gerente, e crescer com a Havan, você já imaginou que tudo isso pode acabar no dia 7 de outubro? E que a Havan pode um dia fechar as portas e demitir os 15 mil colaboradores” (..) Vamos trabalhar até 07 de outubro para fazermos nossa parte para levarmos o nosso barco para um porto do bem. Que nós não venhamos a ser uma Venezuela, uma Cuba ou uma Coréia do Norte. Não vote em comunistas e em socialistas que destruíram este país. Nós somos hoje frutos dos votos errados que nós demos no passado. Nós não podemos errar. Conto com cada um de vocês. Dia 07 de outubro vote 17, Bolsonaro para nós mudarmos o Brasil. Obrigado pessoal. Conto com cada um de vocês”​.
 
E, não bastasse, tudo foi filmado como uma peça de propaganda e divulgado amplamente em redes sociais, nos mesmos canais em que o empresário aparecia, com sua família, visitando o seu convalescente candidato à presidência. Pode-se imaginar a situação do empregado que, detestando aquele político favorito do patrão e tendo declarado para seus amigos que jamais votaria nele, aparece na internet para o mundo inteiro fazendo-lhe submissa e reverente saudação. Quem assistir à triste peça, na qual os empregados estão amestrados a agir roboticamente como se tivessem sido lobotomizados, perceberá que a coreografia ganha tintas de um pesadelo orwelliano, com tons sombrios de bufonaria totalitária.
 
Ao que parece, o empresário Hang, controlador da cadeia de lojas Havan, tem uma grande admiração pelos Estados Unidos, pois erigiu, diante de seus estabelecimentos, réplicas enormes da Estátua da Liberdade.
 
Mas será que uma atitude prepotente e atrabiliária como
a do Sr. Hang seria admitida nos EUA?
 
Vamos dar um pulo até lá para ver como o direito americano trata a questão.
 
As eleições nos Estados Unidos, inclusive para cargos federais como Deputado e Senador, são organizadas pelos Estados. Em razão do alto grau de autonomia federativa, cada Estado elege e os seus Deputados Federais e Senadores segundo o seu próprio procedimento. Assim também ocorre no momento de escolha dos delegados ao colégio eleitoral que elege o Presidente. Por isso, a legislação sobre processo eleitoral é essencialmente estadual.
 
O país não tem um órgão nacional que administra e uniformiza
as eleições como a Justiça Eleitoral no Brasil.
 
Isso é atribuição de cada estado, e em geral são comissões interpartidárias dos poderes legislativo e executivo locais que organizam o processo eleitoral. Esse modelo pôde ser percebido de forma bem clara pelos estrangeiros nas eleições para presidente dos EUA de 2000, quando o prosaico sistema adotado no Estado da Flórida entrou em colapso e não havia como se determinar quem havia vencido no Estado, o que ensejou uma ação na Suprema Corte para resolver o imbróglio, uma vez que os votos naquela unidade federativa eram decisivos para estabelecer o vencedor.
 
A única lei nacional sobre eleições é a Federal Election Campaign Act (FECA), de 1971, que consolidou e ampliou normas anteriores sobre financiamento e gastos em campanhas eleitorais para o Congresso e a Presidência dos EUA. Um dos objetivos desta norma é regular e controlar a influência do poder econômico das empresas no processo eleitoral.
 
Por conseguinte, a FECA estabelece algumas restrições para o mundo corporativo, vedando, por exemplo: a) solicitação de doações para candidatos dentro do seu estabelecimento; b) utilização de materiais da empresa para campanha, incluindo correspondência em papel timbrado ou utilizando o envelope com a sua logomarca; c) utilização de equipamentos da empresa como fotocopiadoras; d) utilização de seus empregados como cabos eleitorais em favor de candidaturas; o trabalho voluntário dos empregados pode até ser admitido, desde que “não resultante de qualquer forma de coerção”; e) solicitação direta, aos empregados que não ocupem cargos de confiança, de doações para campanhas eleitorais.
 
Observe-se que o intuito da FECA, em razão do objetivo da lei, é apenas o de que a empresa não use de seus recursos materiais e humanos em favor de candidaturas, pois isso seria considerado uma forma camuflada e ilegal de financiamento eleitoral. Daí a proibição de empregados serem recrutados para trabalhar em favor de candidatos apoiados pela empresa. Esse já é um elemento limitador da ação empresarial sobre os seus subordinados. Não há, no entanto, a preocupação específica com a liberdade de consciência e expressão política dos trabalhadores nesta lei federal. Todavia, praticamente todos os cinquenta Estados da União disciplinam essa matéria em leis locais, com o fim de proibir de interferência, influência ou pressão de patrões sobre a orientação política dos seus empregados.
 
Apenas alguns exemplos: no estado do Alabama, empregadores não podem tentar influenciar o voto do empregado, nem perguntar em que ele votou; a lei não permite ameaçar com demissão, redução de salários, mudança de turno ou função. Na Califórnia, empregadores não podem dissuadir ou impedir empregados de participarem em atividades políticas ou ameaçá-los de demissão por se participarem ou recusarem a participar de atividades políticas. Em Idaho, Ohio e Tennessee, tentar influenciar empregados direta ou indiretamente é ilegal. Em Indiana, a lei veda expressamente ao empregador comunicar ou afixar cartazes advertindo os empregados de que a vitória de determinado candidato poderá levar ao fechamento da empresa ou a redução de pessoal. Idêntica provisão também é encontrada em Maryland, no Oregon, na Pennsylvania, Nova Jersey, em Utah e no Wisconsin. Elaborada pelo advogado de Chicago Gray I. Mateo-Harris, a lista completa está disponível no site da Society for Human Resources Management.
 
Em geral, prevalece no direito norte-americano a concepção de que a liberdade de expressão pode ser limitada no local de trabalho, uma vez que se trata de relação privada (nos EUA, a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais sofre certas restrições em matérias como a liberdade de expressão). Mas isso funciona como uma via de mão dupla. Tanto o empregador pode proibir os seus empregados de fazerem campanha eleitoral durante o expediente e nas dependências da empresa (inclusive vedando o uso de camisetas, adesivos e bottons), como também lhe é restringido o direito de tentar influenciar ou pressionar seus empregados a votarem no candidato que a empresa apoia.
 
Embora tenha muitos julgados sobre o direito à livre expressão política de servidores públicos (como em Keyishian v. Board of Regents, 385 U.S. 589 (1967)), a Suprema Corte dos EUA nunca examinou caso envolvendo a liberdade política dos trabalhadores dentro de empresas privadas (possivelmente porque, em geral, ela é respeitada). Há, contudo, um importante precedente julgado pela Justiça Federal daquele país com essa temática. Em 1983, a Corte de Apelações do Terceiro Circuito (equivalente a um de nossos TRFs) apreciou o caso Novosel v. Nationwide Insurance Company, que ocorreu em Butler, Pennsylvania.
 
Os fatos eram os seguintes. A companhia estava acompanhando um projeto de lei na assembleia legislativa daquele estado que estabelecia normas sobre o mercado de seguros, cujo teor favorecia suas atividades comerciais. A direção da empresa circulou então um memorando entre os empregados, pedindo-lhes que fizessem lobby junto aos legisladores estaduais, pressionando-os a aprovarem o projeto, pois isso seria do interesse da empresa. John Novosel, que trabalhava para a Nationwide Insurance desde 1966, recusou-se a atender o pedido e comentou com colegas que discordava do projeto de lei tal como apoiado pelo empregador. Ele foi despedido logo a seguir.
 
Embora o contrato de trabalho de Novosel permitisse o seu desligamento sem justa causa (employment at will), a justiça federal entendeu que o empregador violou a liberdade de expressão política do empregado. A corte declarou que embora a relação de emprego fosse privada, “uma importante política pública está em questão quando o poder de contratar e despedir é utilizado para ditar os termos em que as atividades políticas dos empregados podem ser exercidas. (…) A proteção de importantes liberdades políticas vai muito além da questão de saber-se se elas estão ameaçadas pelo estado ou por corporações privadas.”
 
Não há dúvida, portanto, seja do ponto legislativo ou jurisprudencial,
que o direito norte-americano protege a liberdade de expressão
política dos empregados no local de trabalho.
 
E não poderia ser diferente porque liberalismo, afinal, significa respeitar, acima de tudo, o direito de consciência e liberdade política – inclusive no ambiente laboral.
 
O empresário Luciano Hang, depois de ser notificado por oficial de Justiça da decisão que o obrigou a cessar as pressões políticas sobre os seus empregados, ainda reclamou abertamente nas redes sociais da decisão da Justiça do Trabalho, como se ela fosse um verdadeiro despautério. Ele, que tanto louva os EUA, se praticasse tal conduta naquele país estaria igualmente em maus lençóis e certamente sofreria condenações de alguns milhares de dólares em processos trabalhistas.
 
O que alguns de nossos toscos liberais não percebem é que a liberdade no país de Thomas Jefferson é um direito de patrões e empregados. Sim, os empregados, por lá, também são considerados cidadãos livres, mesmo quando estão dentro das empresas onde trabalham. A igualdade de status jurídico não depende das suas condições econômicas ou muito menos de argumentos de autoridade. Como bem observa Roberto Da Matta, enquanto no Brasil prevalece o “sabe com quem você está falando?”, nos EUA vale o “quem você pensa que é?”
 
Certamente não será coincidência que as enormes réplicas da Estátua da Liberdade erguidas pelo Sr. Luciano Hang estejam do lado fora dos seus estabelecimentos, distante do campo de visão de seus empregados.
 
*Cássio Casagrande – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense - UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
 

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