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Afundem o Besnard!, diz professor da USP sobre navio 'encalhado'

Fonte: Folha de S. Paulo / Luis Americo Conti (*)

 
Após severas baixas da Marinha Real inglesa, no auge da Batalha do Atlântico na Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill estabeleceu seu alvo prioritário: o navio que havia aterrorizado a frota britânica e os navios mercantes americanos que abasteciam os aliados de suprimentos. Assim, foi proclamada a ordem que viria a ser uma das frases mais icônicas da história da guerra: "Afundem o Bismarck!". A preocupação do premiê britânico era justificável. O Bismarck era um encouraçado mastodôntico de mais de 250 metros com um histórico de combate impecável a serviço da Marinha alemã e foi um protagonista no teatro de Guerra do Atlântico Norte. No dia 27 de maio de 1941, após enormes esforços dos aliados e depois de um dramático cerco, o Bismarck foi enfim afundado. No inverno de 1989, os destroços do Bismarck foram descobertos, sobre um vulcão submarino a mais de 4.500 metros de profundidade, pelo aventureiro e pesquisador submarino Robert Ballard, que ficara famoso quatro anos antes pela descoberta do local de outro famoso naufrágio: o Titanic.
 
Com uma narrativa muito menos famosa ou dramática, mas com um histórico de admiráveis serviços prestados a seu país, o Navio Oceanográfico da Universidade de São Paulo, o "Professor Vladimir Besnard", também teve seus momentos de glórias e foi o protagonista em um sem número de expedições que colocou no mapa as ciências marinhas no Brasil. O navio (que homenageou o cientista pioneiro da oceanografia brasileira e fundador do Instituto Oceanográfico da USP), nunca foi um primor de tecnologia ou de elegância ao navegar. Adaptado de um barco de pesca construído na Noruega em 1967, o Besnard chegava a ser um tanto quanto rude e desequilibrado para um navio de pesquisa: não tinha toda a estabilidade necessária para lançar instrumentos frágeis em seu bordo em mares difíceis e por ter um casco abaulado e uma distribuição de peso um tanto quanto desigual, podia tornar a vida dos pesquisadores e tripulantes a bordo bastante desconfortável, para dizer o mínimo.
 
Mas, apesar de tudo, o Besnard foi o responsável direto por quase tudo que sabemos sobre o nosso território marinho; foi através e por causa dele que os grandes projetos pioneiros de pesquisa de reconhecimento da margem continental brasileira foram executados com sucesso: dos levantamentos da biodiversidade da zona econômica exclusiva ao mapeamento geológico da plataforma continental e talude; do reconhecimento das correntes marítimas ao largo da costa brasileira às primeiras viagens à Antártida. Tive a oportunidade de embarcar no navio em alguns destes projetos e, junto com outras dezenas de pesquisadores, estudantes e tripulantes, posso dizer com orgulho que fiz parte desta memorável história.
 
Mas como um veterano cansado e cheio de cicatrizes, chegou a hora de aposentá-lo. A Universidade adquiriu um outro navio, mais moderno e adequado à pesquisa e o velho Besnard ficou encostado na doca de Santos (litoral paulista) aguardando seu destino final. A primeira ideia foi doá-lo ao governo do Uruguai, onde ele continuaria realizando pesquisas por mais alguns anos, nos estertores de sua vida útil, mas ao que parece, não houve acordo e o navio continuará mesmo por aqui. Confesso que fiquei aliviado, não acho que o navio tenha realmente mais condições de trabalho em circunstâncias de mar severo (como a costa uruguaia constantemente está submetida). A alternativa, segundo consta, é desmontá-lo e vendê-lo como sucata.
 
A situação é compreensível, poder-se-ia pensar na transformação do navio em um museu flutuante ou, até como foi considerado, rebocá-lo para São Paulo, onde poderia ser exposto no campus da Universidade de São Paulo. Todas essas são idéias muito interessantes mas que demandariam recursos que, nos dias de hoje, a USP simplesmente parece não dispor. Por isso ofereço uma ideia que poderia não custar grandes somas aos cofres públicos e que, ao mesmo tempo, traria um fim digno a quem prestou tantos serviços a ciência brasileira: parafraseio Churchill: "AFUNDEM O BESNARD!"
 
A pratica de naufrágios induzidos é amplamente difundida em todo o mundo. A idéia de afundar navios ou quaisquer estruturas de concreto ou de metal em áreas rasas, visa criar um substrato para o desenvolvimento local da biodiversidade que, por conseqüência, tende a incrementar atividades como a pesca e o turismo submarino. Creio que a imagem do velho navio, escorado no fundo marinho, servindo de base para o crescimento de corais e de abrigo para peixes e deleite de mergulhadores, seria muito mais nobre do que imaginar o seu esfacelamento, com partes sendo vendidas pelo valor de seu peso em metal. Seria admirável que a memória do Navio Oceanográfico Professor Vladimir Besnard fique preservada, não apenas em fotografias e histórias de quem nele um dia navegou, mas em um monumento submarino, em plena harmonia e integração com o ecossistema marinho do Atlântico Sul, o mesmo que ele, digna e honrosamente, nos ajudou a compreender.
 
(*) Luis Americo Conti é professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo) 
 

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